Não será novidade para ninguém que qualquer contexto da nossa sociedade é, por vezes, marcado por episódios de preconceito e discriminação. Os grupos que são alvo destes episódios são sistematicamente os mesmos, o que contribui para que se desenvolvam instâncias de discriminação de nível mais estrutural. Um contexto que é particularmente permeável a esta discriminação estrutural e fértil na existência de enviesamentos preconceituosos e discriminatórios é o contexto educacional.

De facto, dados de pesquisas internacionais (maioritariamente dos EUA) mostraram já, de forma muito consistente, a existência de desigualdades no contexto educacional e indicam enviesamentos raciais na raiz dessas. Estudantes negros tendem a ter notas mais baixas, e a receber sanções disciplinares mais graves (que estudantes brancos) para comportamentos semelhantes. Além disso, os professores tendem a ter expectativas mais baixas em relação aos estudantes negros e essas expectativas determinam frequentemente um desempenho mais negativo destes alunos. Mais impressionante será perceber que a maior discrepância entre as perceções de esforço de estudantes brancos e negros acontece ao nível do primeiro ano de escolaridade, quando ainda não existiu contacto suficiente com os alunos que justifique perceções diferenciadas, parecendo assim aproximar-se mais de uma questão de preconceito.

Em Portugal, há (pelo menos) dois conjuntos de dados que também apontam para a existência de desigualdades. Por um lado, um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, da autoria de Luís Catela Nunes, Ana Balcão Reis e Carmo Seabra relativo a cerca de 6600 crianças que frequentaram o 4º ano letivo em 2006/2007 e que tiveram uma avaliação negativa nas provas nacionais de Português e Matemática. O estudo procurou perceber os aspetos que mais servem como fatores explicativos da eventual retenção de alguns destes alunos. Os dados indicam que a nacionalidade (i.e. ser de “outro país de língua portuguesa”) é o fator mais saliente na probabilidade de a criança ser objeto de retenção escolar. Os próprios autores do estudo indicam que os resultados parecem indiciar a existência de discriminação a favor da retenção dos alunos PALOP.

Por outro lado, há um outro fenómeno que também parece ser indicativo da existência de algum enviesamento: números oficiais da Direção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) do Ministério da Educação mostram que 78% dos alunos afrodescendentes no ensino secundário são encaminhados para vias vocacionais, i.e. os chamados cursos profissionais. Isto é quase o dobro dos alunos de origem portuguesa (não-afrodescendentes). Para os alunos encaminhados para esta via, o acesso à universidade é mais improvável. Por isso mesmo, a disparidade nesta fase evita a surpresa quando vemos a proporção de alunos afrodescendentes que chegam à Universidade (16%) em comparação com a proporção de alunos portugueses (34%). Dado que esta disparidade se mantém mesmo quando se tem em consideração o estatuto socioeconómico destes estudantes, é possível que a explicação assente em enviesamentos contra alunos afrodescendentes nas recomendações que os professores fazem.

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Ainda que não haja nada de vinculativo nas recomendações dos professores, estes desempenham um papel absolutamente fulcral na forma como os alunos e os encarregados de educação decidem sobre os seus percursos escolares futuros. Se houver efetivamente enviesamentos nas recomendações que os professores fazem a alunos pertencentes a diferentes grupos sociais, é possível que essas recomendações estejam a ser suportadas por expetativas diferenciadas ou perceções relacionadas com a disciplina e o desempenho. Se for esse o caso, a situação será mais preocupante dado que, pelo que vimos acima, estas disparidades em termos de indisciplina e desempenho podem, elas próprias, já ter sido causadas por enviesamentos. E apesar disso, quando o professor toma uma decisão ou faz uma recomendação com base nestes, sente-se perfeitamente validado para fazer recomendações diferentes, sem sequer se sentir preconceituoso. E assim, podem estar a decorrer enviesamentos nas recomendações que mais dificilmente poderão ser evitados porque têm a peculiaridade perversa de estarem legitimados por outras disparidades.

É importante reconhecer que os dados referidos para Portugal se baseiam fundamentalmente no uso da categoria “afrodescendentes” que acarreta necessariamente algum erro: há alunos brancos que são categorizados como afrodescendentes porque eles ou os pais nasceram num país africano e alunos negros que têm nacionalidade portuguesa. E será claramente expectável que seja a cor de pele, e não o facto de terem nascido num país africano, que dita estes enviesamentos. O facto de a recolha de dados étnico-raciais não ser permitida numa recolha destes dados a nível nacional impede que haja uma análise global ao sistema. Isto significa que estamos claramente necessitados de pesquisa que procure aferir estes aspetos de forma direta e diagnosticar a existência destes eventuais enviesamentos. E, se estes existirem, que possamos discuti-los num ambiente aberto e que respeite o trabalho e a posição dos professores, que já têm tanto com que se preocupar no trabalho hercúleo que desempenham.

Rui Costa Lopes é Investigador Principal do ICS – Universidade de Lisboa

Mafalda F. Mascarenhas é Doutoranda em Psicologia Social (LiSP, Universidade de Lisboa)

Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.