“Todas as minhas experiências de férias britânicas foram invariavelmente pavorosas, vomitáveis, aberrantes. Más, mas tão más, que às tantas uma pessoa desata a rir daquilo tudo.” Com este mote se desenha o livro de viagens – ou melhor dizendo, “anti-livro de viagens” – de João Magueijo, “Bifes mal passados” da editora Gradiva.

Escrever uma série de crónicas sobre as peripécias em terras de Sua Majestade era uma ideia que tinha há muito, mas sem tempo para o fazer deixou-a de lado. Retomou-a na Grécia, numa das suas estadias fora de Inglaterra para não ficar “perdido da cabeça” (como diria a avó de João Magueijo tantas vezes citada neste livro). Em três semanas escreveu o esboço, conta ao Observador.

Desmontou e voltou a montar histórias reais que viveu ao longo dos últimos 25 anos, desde que foi viver para o Reino Unido – que de unido, como mostra, não tem nada. As bebedeiras e a agressividade resultante, os dias de chuva ou nevoeiro e a péssima comida não serão surpresa para muitas pessoas, mas a questão das classes não é assim tão conhecida. “Que eu saiba não existe em mais nenhuma parte do mundo uma estratificação tão estanque”, refere João Magueijo, professor de Física no Imperial College, em Londres.

“Os sotaques demarcam as divisões sociais”, continua. É possível perceber não só a proveniência geográfica, como em Portugal, mas também o estrato social a que pertencem. “Mesmo dentro da classe média há divisões e subdivisões.” Por isso decidiu desde o início manter o sotaque portugês. “Enquanto estrangeiro tenho acesso às classes todas.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sejam da classe alta ou operários, os britânicos mantêm sempre um certo ar de superioridade em relação a todos quantos não tenham verdadeira origem e educação nas ilhas britânicas. Mesmo os portugueses são considerados “não-completamente-brancos”, refere João Magueijo. O autor atribui esta atitude a uma herança dos tempos do colonialismo. Com este livro pretende descontruir a ideia de superioridade britânica e inferioridade lusa – os ingleses têm muitos defeitos.

Magueijo

“Bifes mal passados” para mostrar aos tugas que os bifes também têm defeitos – DR

Apesar das críticas mordazes, o físico admite que não consegue abandonar a Inglaterra totalmente. Mas também não consegue viver lá o ano inteiro – invoca “razões de saúde mental”. Mantém com o país que o acolhe uma relação de amor-ódio. “A Inglaterra com todos os seus problemas, defeitos e maleitas sociais acaba por ser um país interessante.”

Interessante, mas horroroso. Contudo, é da fealdade deste país que nasce a criatividade. Por isso tem tanto potencial cultural. “Do atroz que é nasce o sublime que passa a ser, como do vil estrume podem nascer as mais finas rosas”, escreve no capítulo “Ode ao Reino Unido”. “Eu gosto desse ambiente [feio], não consigo é estar lá muito tempo. Às tantas uma pessoa dá completamente em doida – é o clima, a comida, as pessoas, as atitudes.”

Uma teoria pouco convencional

“Bifes mal passados” é o primeiro livro que Magueijo escreve em português e também o primeiro que nada tem a ver com ciência, pelo menos não com a sua ciência – a Física. Vai ser lançado esta quinta-feira, pelas 19h00, na livraria Ler Devagar, em Lisboa.

O primeiro livro “Mais rápido do que a luz – A biografia de uma especulação científica” foi editado originalmente em inglês em 2003. Além de propôr que a velocidade da luz não foi sempre constante desde o início do Universo, contrariando a teoria da relatividade de Einstein — só por si suficiente polémico — ainda expôs o lado mais obscuro da comunidade científica. “Estou ali a lavar a roupa suja em frente dos jornalistas e das pessoas em geral.”

Expôr no livro as dificuldades que teve em publicar o artigo científico que descrevia a teoria da velocidade variável da luz foi uma afronta, porque são aspetos que a comunidade científica tenta esconder. É, portanto, evidente que a oposição foi grande.

Agora, mais de dez anos passados, os cientistas estão mais abertos a estas teorias e há mais gente a trabalhar nesta área. Lançar esta “bujarda” para deixar uma semente afinal surtiu efeito. O físico só lamenta que o tempo passado desde que formulou a teoria ainda não tenha sido suficiente para a demonstrar na prática. Porque este é o objetivo dos físicos: criar teorias que façam previsões e depois confirmá-las ou refutá-las com observações.

O mistério do físico desaparecido

Um físico teórico com uma grande admiração por outro. Quase uma obsessão. Foi isso que levou João Magueijo a escrever um livro biográfio sobre Ettore Majorana – físico italiano que se interessava por neutrinos e que desapareceu misteriosamente. “É uma personagem muito estranha porque rejeita a ciência, rejeita a família, rejeita o mundo e desaparece.”

Todos os verões, durante o doutoramento, o físico português trabalhava como secretário científico no Centro de Cultura Científica e Fundação Ettore Majorana, em Erice, na Sicília. E a admiração pelo físico italiano crescia. “Escrever o livro foi um tipo de exorcismo, para me tentar livrar da obsessão que tinha por ele.” Mas o exorcismo não resultou.

Muito menos agora que passa cerca de um terço do ano na Universidade La Sapienza, em Roma, e tem de se cruzar com a estátua de Majorana sempre que entra no departamento de Física. Embora não se identifique com a personalidade depressiva de Majorana, João Magueijo aprecia a forma como o físico italiano encarava a ciência – não vivia exclusivamente para ela como a equipa com quem convivia, Enrico Fermi e os Rapazes da Via Panisperma.

“Detesto a ideia do cientista que não tem interesse em mais nada fora da ciência”, afirma o físico. “Fermi e os Rapazes da Via Panisperma faziam ciências e não faziam mais nada. E isso teve implicações dramáticas – contribuíram para construir a bomba atómica sem pensar muito bem no que estavam a fazer.”

Não quer ser burocrata da ciência

“Mas não são só os cientistas que precisam de conhecimentos fora da ciência, as pessoas fora da ciência também precisam de cultura científica”, diz João Magueijo, porque no futuro terão de ser tomadas decisões em relação ao clima ou à genética, e para que as pessoas o possam fazer democraticamente precisam de estar informadas. “Acho que é fundamental todos nós [cientistas] fazermos divulgação científica.”

Os dois primeiros livros que escreveu já cumprem essa função. Outros poderão vir, não sabe. Talvez seja o caminho quando deixar de ser cientista. Porque no dia em que não poder fazer ciência e tiver de fazer “burocracia da ciência” muda de vida. E gosta de escrever. Especialmente para a Gradiva, editora dos livros que o motivaram para a ciência. “Estar a escrever livros para a gradiva ao fim destes anos todos é uma coisa que fecha o ciclo.”

Mas enquanto a criatividade o acompanhar não deixará a ciência. Continuará a estudar a teoria da velocidade variável da luz e a gravidade quântica – que pretende unificar a teoria clássica da relatividade geral com a teoria quântica. “A maior parte dos cientistas deixa de fazer coisas criativas depois dos 30 anos, e eu já tenho 46.” Mas estar em Roma é como ser pos-doc, sem a precaridade. “Passar o dia aos gritos com duas ou três pessoas no gabinete a fazer brainstorming [discussões criativas].”