Nas noites de sexta-feira e sábado, a Praça Camões, em Lisboa, é um ponto de encontro para grupos de amigos antes de partirem bairro acima a descobrir bares nas várias ruas. Mas aquele espaço já teve um uso bem diferente. A Praça Camões foi, em tempos, o Palácio dos Marqueses de Marialva. Todo o quarteirão ocupado pelo palácio foi demolido nos finais do século XIX. Em 1999, quando se fizeram escavações para construir o atual parque de estacionamento subterrâneo na praça, ainda foram encontrados vestígios.

Em 500 anos, o Bairro Alto conta uma história de várias fases. Antes de se chamar Bairro Alto, chamava-se Vila Nova de Andrade. No século XV, a zona pertencia a Guedelha Palaçano, um dos homens mais ricos do país. Alguns anos mais tarde, a viúva de Guedelha cedeu as herdades para a construção de casas. Em 1528, Vila Nova de Andrade tinha 408 habitantes. Entre 1528 e 1551, a população aumentou 20 vezes.

A chegada dos jesuítas ao Alto de São Roque, ali mesmo ao lado do bairro, marca uma fase de novos comportamentos. Instalam-se a partir de 1553 e tornam-se um polo irradiador de cultura. São confessores da família real e da mais alta nobreza e têm bastante influência na educação da jovem aristocracia. Muitas famílias abastadas mandaram construir palácios no atual Bairro Alto, como os Duques de Bragança e os Condes de Vimioso. Era ali que estava a “elite”.

O terramoto de 1755 deixou Lisboa destruída. A cidade arde durante vários dias, mas o Bairro consegue resistir devido aos edifícios de paredes grossas e baixa altura. Marquês de Pombal tratou, então, de encetar um plano para reconstruir a cidade — e o Bairro fica de fora, por ser a zona menos urgente. Com o alargamento e construção de grandes conjuntos arquitetónicos nos seus limites, o Bairro Alto fecha-se numa espécie de ilha. Os prédios altos da renovação pombalina criam uma espécie de muralha.

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A meio de 1800 chegam os jornais, que se tornaram indissociáveis da história do bairro. Nos finais do século XIX, a imprensa era rainha das ruas: 13 jornais matutinos e 8 vespertinos faziam do Bairro Alto a sede do jornalismo. Os palacetes instalados naquela zona estavam vazios, com a aristocracia a deslocar-se para as zonas reabilitadas. Das amplas salas dos palácios da nobreza, cavalariças e cocheiras, fizeram-se salas de redação e tipografias. Na Calçada do Combro funcionava, por exemplo, a Revolução de Setembro e A Batalha. A rua Diário de Notícias recorda-nos que lá funcionava o jornal com o mesmo nome. O jornal O Século vinha diretamente da rua do Século e na rua da Atalaia ficava o desportivo Record. O Correio da Manhã e o jornal A Capital também moraram aqui. A I República chegou em 1910 e o Bairro Alto continuava a ser um polo muito importante da informação.

Era também nestas ruas que jornalistas, tipógrafos e ardinas se reuniam com políticos e escritores, num ambiente intelectual que marcou profundamente o ADN do Bairro Alto. As casas de pasto e os botequins eram espaços de referência para grandes conversas. Estávamos em 1926 e chegou o Estado Novo – os jornais resistiram mas a liberdade de pensar foi condicionada pela censura. Nos anos 30, o maior parque gráfico do país estava no Bairro Alto. Para os típicos ardinas, estar nesta zona alta de Lisboa facilitava a saída para a distribuição dos jornais pelos outros bairros – partir a descer é mais fácil do que partir a subir.

Com a mudança das formas de distribuição, os títulos mais recentes começaram a instalar-se noutros pontos da cidade. Também a Hemeroteca de Lisboa, instituição que preserva mais de 500 000 publicações do município, mudou de instalações em novembro do ano passado, depois de 40 anos no Bairro Alto. Hoje só o jornal A Bola e o Observador se mantêm na zona.

Nos anos 80, o Bairro Alto era a referência de uma nova liberdade. Depois do 25 de abril, um dos principais pontos de encontro era a Cervejaria Trindade. O Zé da Guiné é uma das personagens associada à nova vida noturna da zona e há dois bares ainda hoje icónicos: Frágil e Os Três Pastorinhos. Mas o clima de vida boémia sempre existiu: devido à proximidade com o rio, existia muita prostituição por causa dos marinheiros.

O Bairro Alto mantém as funções de comércio. Ao passear pelo bairro durante o dia encontram-se talhos, mercearias e lojas tradicionais. Aos idosos juntaram-se muitos jovens e o turismo também é impulsionado, por exemplo, pela instalação de vários hostels. À noite, o bairro continua a ser o espaço escolhido por muitos para longas horas de diversão.