Se o título pode indiciar uma conversa com uma bolinha vermelha a observar-nos de forma crítica no canto superior do ecrã, a realidade prática é que falaremos da maioridade dos consumidores de videojogos, e não de algum conteúdo estritamente adulto. Até porque é nossa intenção falar da pluralidade de existência deste mercado que tanto cresceu nos últimos anos, e da abrangência multi-etária dos jogos.
Quase todos os meios de entretenimento tiveram um período de crescimento, de solidificação e estruturação enquanto objetos independentes de outros meios análogos, passando a ter uma realidade unívoca que apesar de comparável a outros objetos a mantém devidamente distinta à compreensão de todos. Os videojogos, a par do que sucedeu com o cinema e a televisão, são um exemplo disso.
Para compreendermos o quanto os videojogos mudaram e a forma como o Mundo os observa basta recuarmos até à nossa infância. Basta regredirmos às tardes de verão que passámos em casa daquele vizinho que tinha o fantástico ZX Spectrum em que a maravilha gráfica de R-Type nos lembrava do mais recente filme de sci-fi que vimos nos Cinemas Alfa, ou mesmo as visitas à casa daquele primo que possuía um Commodore Amiga, esse computador tão avançado para a época que muitas vezes tememos estar inadvertidamente a encarnar o papel do Mathew Broderick no WarGames de 1983. Eram tempos simples em que a guerra das consolas não existia – pelo menos para nós – que tudo o que queríamos era jogar tudo o que houvesse disponível, desenvolvendo verdadeiros pactos com os vizinhos e melhores amigos para que, com o pouco dinheiro disponível que cada família tinha para estes “brinquedos”, conseguíssemos comprar plataformas diferentes e desta forma maximizar o número de jogos ao qual tínhamos acesso.
Se hoje acreditamos que os videojogos são caros, basta pensarmos nos seus preços entre 1989 e 1994, bem como a percentagem do salário mínimo a que cada consola e jogo correspondiam para percebermos que possuí-las era um verdadeiro luxo. Foi essa uma das razões para que muitos de nós que ultrapassámos a barreira dos 30 anos jogássemos e rejogássemos os poucos jogos que possuíamos e que guardamos com as melhores das memórias todos os jogos que nos foram emprestados e que com sofreguidão tentámos terminar antes de devolver ao seu dono. Isto para não falar, é claro, das máquinas dos salões ou dos cafés dos nossos bairros, que nos consumiram moedas de 20$ e de 50$ como hoje o fazem os parquímetros da cidade de Lisboa.
Os videojogos democratizaram-se e hoje em dia já não precisamos de vender um dos nossos órgãos internos para conseguir comprar um jogo que seja. Entre a (quase excessiva) oferta de jogos free e freemium do mercado móvel e os muitos bundles solidários que nos permitem comprar uma mão-cheia de jogos por 3€ já não existe razão para termos de rejogar os mesmos jogos ad nauseam. A gigantesca oferta é apenas sinónimo de uma coisa: jogar já não é uma actividade de nicho. Jogar é tão mainstream quanto ir ao cinema. E nos dias de hoje é até mais barato.
Há uma pequena análise geracional que podemos retirar desta (ainda) jovem área. Se a geração que está hoje entre os 30 e os 40 anos de idade foi a primeira a conviver com os videojogos enquanto fonte de entretenimento, é também esta geração que nacional e internacionalmente corresponde à grande faixa de consumidores do mercado, sendo que representa também a maioria dos críticos e jornalistas do meio, bem como a quase totalidade de game developers que vão alimentando anualmente o mercado com centenas de novos títulos. O que significa que quebrámos a barreira do estigma que existia na nossa infância de que os jogos eram apenas “brincadeira de crianças”. Significa também que o mercado cresceu connosco, fazendo deste segmento geracional como parte intrínseca e indissociável de todos os avanços (e também alguns recuos) que os videojogos tiveram na sua tenra vida.
Foi por uma série de pessoas que partilharam e partilham esta realidade que o Rubber Chicken foi criado: fruto da perceção de que para ler opinião sólida e séria sobre videojogos era necessário importar a revista Edge ou ler a Joystiq, com a necessidade de se afastar de grande parte dos blogues e sites noticiosos que lançam o mais pequeno update, os mais inócuos rumores, ou a mera agregação de parágrafos de relações-públicas das editoras. Surgiu como união de adultos de diversas idades e com variados backgrounds que pensam, refletem e escrevem sobre videojogos com a seriedade conceptual e intelectual que eles merecem. É claro que esta seriedade anda muitas vezes de mão dada com o humor acutilante e uma gigantesca dose de loucura.
Dado o forte pendor de opinião que caracteriza o Rubber Chicken, a oportunidade de efectuarmos uma parceria com o Observador fez todo o sentido. Percebemos que esta é uma das formas privilegiadas para chegar ao grande público que de forma mais casual ou mais aguerrida já lida com os videojogos no seu dia-a-dia. Mostrarmos acima de tudo uma grande diversidade de opiniões provenientes de pessoas com vivência distintas, mas que têm no Rubber Chicken uma só voz. Apesar dos videojogos terem já aberto muitas portas ao longo das décadas, queremos tornar-nos um portão escancarado para todas as mentalidades.
Convenhamos: desde crianças de muito tenra idade agarradas aos smartphones e tablets dos pais a entreterem-se com jogos mais ou menos didáticos, até à total rendição da quase totalidade das nossas famílias (o que inclui os nossos familiares de idades mais avançada) que se viram submersas no vórtice dos jogos free-to-play do Facebook e que nos enchem os murais a pedir esta ou aquela ajuda em jogos perfeitamente virais, que quase toda a gente lida diariamente com videojogos. É impossível escapar. Muito provavelmente muitos dos que nos leem neste preciso momento estão com outros separadores no navegador com algum jogo casual que utilizam para pequenos momentos de escapismo mental, ou a receber notificações nos seus telemóveis de que um amigo bateu a vossa pontuação no vosso jogo de eleição.
Os videojogos nunca foram o “Clube Livra-te das Raparigas Peganhentas” do Calvin & Hobbes, nem o “Clube do Bolinha”, e por muito que o estigma que os crucificavam enquanto “coisa para miúdos”, servia igualmente para rotular que era “coisa para rapazes”. O que não poderia estar mais errado perante a realidade de quem joga. Um exemplo disto é esta nossa Capoeira que possui das jogadoras mais ferozes que conhecemos. E por muito que tentemos ninguém as vence em jogos de luta, futebol ou “de tiros”.
Estamos em 2015 e não existem estigmas em relação aos videojogos. Aliás, quase não existem, mas isso é um assunto para mais tarde. Para além de ser um mercado que movimenta (em investimento e em retorno) volumes de dinheiro que superam grandemente os de Hollywood, existe já um grande caminho trilhado desde as primeiras experiências monocromáticas de outrora e que fazem parte da nossa memória até aos jogos hiper-realistas de hoje que confundem a barreira visual de separação entre a ficção e a realidade. Continuamos a ser adultos, pais, profissionais que jogam diariamente, e que situam os videojogos na charneira que separa o entretenimento e a cultura, ou porque são dois conceitos que não são, de forma alguma, mutuamente exclusivos, a zona que define a união entre ambos.
E porquê Rubber Chicken? Porque homenageia um dos jogos intemporais que tivemos acesso há já 25 anos e que é um dos melhores exemplos da melhor união possível entre uma exímia qualidade de escrita, uma excelente dose de humor e a loucura quasi-surrealista que compunha grande parte dos jogos da “extinta” LucasArts. Falamos obviamente de The Secret Monkey Island. E são jogos como este, do passado e do presente, e também a antevisão a alguns jogos que pertencem ao futuro (próximo) que nos vão trazer aqui semanalmente, a provar acima de tudo que gostar de videojogos não está apenas em voga, mas é um grande sinal de classe. E a nossa Galinha é poedeira, de classe XL. Mas isso já toda a gente sabe.
Ricardo Correia, Rubber Chicken