“Esfreguem a terra na cara. Ela também é vossa”. Quem o diz é Paulo Simões, português emigrante no Rio de Janeiro, aos filhos na sua aldeia natal, Várzea de Candosa, perto da Serra da Estrela. Ele é um dos seis protagonistas do Ba[p]tismo de Terra, um documentário realizado por Vanessa Ribeiro Rodrigues sobre a emigração portuguesa na cidade maravilhosa.
O desafio da longa-metragem partiu de Susana Audi, cônsul-adjunta de Portugal no Rio, em 2014. “Assistimos a um declínio da emigração portuguesa. Ao mesmo tempo, o Rio está cheio de obras para os Jogos Olímpicos. Era preciso trazer a portugalidade de volta à cidade”, começa por explicar a realizadora da obra.
[o trailer do documentário]
Fundada por portugueses, o Rio de Janeiro recebeu milhares de emigrantes. No início do século XX, as dificuldades económicas de Portugal levaram homens, mulheres e crianças ao Brasil à procura de melhores condições de vida. O pico do fluxo migratório ocorreu entre 1901 e 1930, onde a média de emigrantes portugueses ultrapassou a barreira dos 25 mil por ano, de acordo com os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Do Minho, Trás dos Montes, Douro, Beira Alta e Litoral, a imigração portuguesa concentrou-se na zona urbana, principalmente em cidades como o Rio de Janeiro. Segundo o Museu da Imigração do Estado de São Paulo, os portugueses desempenharam um importante papel nos pequenos e grandes comércios. Por isso, o pano de fundo deste projeto é a presença portuguesa no Rio, quer seja em sua arquitetura, quer seja em questões de identidade.
Tal como as personagens, Vanessa Ribeiro Rodrigues também foi emigrante. Viveu cinco anos entre São Paulo e o Rio de Janeiro como correspondente e colaboradora de vários órgãos de informação portugueses. “Também fui batizada aqui. O fato de ter vivido no Brasil deu-me uma liberdade criativa enorme”, conta a jornalista e documentarista, de 35 anos. Meteu às mãos à obra e procurou testemunhos que fizessem a ponte entre gerações de emigração no Rio de Janeiro. “Histórias inspiradoras, de resiliência, de sucesso e de luta e que mostrassem a dificuldade de estar cá e lá”, relata.
No país tropical
O documentário apresenta seis personagens, quatro emigrantes e dois luso-descendentes. “Muitos diferentes entre si mas também com a capacidade de nos rever em cada uma delas”, conta. A fadista Maria Alcina, radicada no Rio de Janeiro desde os anos de 1950, é uma delas. Natural da aldeia de Cetos, distrito de Viseu, veio para o Brasil com a mãe para procurar o pai. “Tem uma história triste como o fado. É o elemento de espiritualidade no documentário”, explica a guionista. Fernando Horta é outro emigrante. Nascido na Lixa, perto de Felgueiras, chegou ao Brasil com 12 anos. Hoje é o líder da escola de samba Unidos da Tijuca mas nunca perdeu a ligação à cidade natal.
Tal como Paulo Simões, que fez questão de levar a família a Portugal para o batismo da terra e conhecer as suas origens. Começou como padeiro e agora é um empresário de referência na cidade. “Estas marcas são muitos importantes e funcionam como metáforas fortes no documentário.” Explica a realizadora que esta história acabou por dar o mote ao título do documentário. Há ainda a luso-descendente Martha Rocha, filha de um transmontano e a primeira mulher no Brasil a tornar-se chefe da Polícia Civil. Ou Luís Santos e Ricardo Pereira, uma nova geração de portugueses. “Estes dois representam a condição de emigrante mais volátil”, explica Vanessa.
O Ba[p]tismo de Terra é uma energia de um coletivo de muitas pessoas. É a condição humana do ser “emigrante” que está nas palavras daquelas personagens. Mas que serve para qualquer pessoa que mora fora do seu país de origem.”
As filmagens decorreram durante o mês de setembro de 2015, “dia e noite” em vários locais do Rio, com uma equipa de Portugal e uma produtora carioca. As paisagens e monumentos da cidade são homenageadas, quase como se fosse impossível falar do Rio sem mostrar o Pão de Açúcar, a Pedra da Gávea ou Corcovado. Depois de nove meses de edição, o Ba[p]tismo de Terra foi apresentado no dia 10 de junho, no Consulado de Portugal no Rio de Janeiro, com direito a casa cheia. “As pessoas queriam partilhar as suas histórias. Era como se a vida dos seus pais, avós, primos estivesse ali contada”, diz.
A guionista juntou ao fio da narrativa um excerto do livro Emigrantes de Ferreira de Castro, onde o autor retrata um percurso transatlântico Portugal-Brasil-Portugal e fala sobre emigração publicado em 1928. “Esta obra foi fundamental para o documentário. Mantém-se contemporâneo e criou naturalmente uma ligação com as personagens”, conta.
Os portugueses do Rio de Janeiro da década de 30 e 50 eram chamados de estrangeiros conhecidos. A adaptação era muito rápida. Tornavam-se mais leves e informais”
Com este trabalho, Vanessa e a sua equipa quiseram mostrar duas realidades da emigração portuguesa. Por um lado, a nova geração de emigrantes licenciados que partem já com contratos de trabalho e com uma rede de networking. Do outro lado, as dificuldades de uma população pobre, sem comida e fugidos de uma ditadura. “As pessoas iam com 13 anos sozinhas num navio. Chegava à praça Mauã, no Rio, e ninguém os esperava. Faziam-se à vida”, descreve Vanessa, após meses de pesquisa com historiadores brasileiros.
Mais Brasil
Por isso, a autora não quer parar por aqui e pretende criar “novas histórias, com outro mote por São Paulo, Belém ou no Sul do Brasil”, quem sabe. “Queremos convidar as pessoas a escrever e mandar as histórias dos seus antepassados”, comenta Vanessa, que já recebeu cartas e relatos de luso-descendentes que irá publicar na plataforma onde divulga o documentário. A equipa está também a criar um acervo de memória com imagens da época que esperam ver exposta numa “coletiva de fatos e áudios no futuro” e participar em festivais de cinema em breve.
O projeto contou com o apoio financeiro parcial da Direção-Geral de Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas, da tutela do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal e apoios institucionais do Consulado-Geral de Portugal no Rio de Janeiro, da Câmara Portuguesa de Comércio e Indústria do Rio de Janeiro e a chancela do Rio Film Commission.
Com a duração de 1h50, o filme tem estética cinemática e foi filmado em 4k ultra HD, preparado para passar em televisão ou cinema. Foi exibido em São Paulo no âmbito da Experimenta Portugal. Vanessa espera apresentá-lo em Portugal até ao fim do ano. Até lá, quer deixar o projeto amadurecer e mostrá-lo a toda a comunidade portuguesa em terras de Vera Cruz. “Isto é só o início”, diz.