“Tudo o que consegui, foi com muito trabalho”, resume Joana Vicente quando olha o percurso que tem feito no cinema independente americano. A ida para Nova Iorque, há 25 anos, teve uma razão principal: o marido, Jason Kliot – que também trabalha como produtor. Conheceram-se em Lisboa, no fim da década de 80.
“O Jason é americano, nasceu e cresceu em Manhattan, mas era amigo de portugueses ligados ao cinema, o Vasco Pimentel e a Maria de Medeiros, e foi desafiado a vir cá”, conta Joana Vicente, em conversa com o Observador num hotel de Lisboa.
“Ele acabou por ser assistente do Samuel Fuller em Street of No Return [Rua Sem Regresso, 1989], que foi rodado em Portugal. Foi ficando por cá mais uns meses e, entretanto, conhecemo-nos.”
No fim dos anos 80, Joana estudava Filosofia na Universidade Católica e o único contacto que tinha tido com o cinema profissional acontecera durante um verão, como assistente do produtor Paulo Branco e do realizador António Pedro de Vasconcelos, que então tinham uma produtora juntos.
Hoje, Joana Vicente é produtora de cinema nos EUA e já trabalhou com os realizadores Todd Solondz (“Welcome to the Dollhouse”, 1995), Jim Jarmusch (“Café e Cigarros”, 2003), Brian de Palma (“Censurado”, 2007) e Alex Gibney (“Gonzo: The Life and Work of Dr. Hunter S. Thompson”, 2008), entre muitos outros.
Dirige também o Independent Filmaker Project (IFP) e integra o Conselho da Diáspora Portuguesa, uma associação sem fins lucrativos através da qual pretende pensar a promoção de Portugal junto da indústria do cinema. Esta quarta-feira, na Universidade do Porto, fará uma intervenção sobre “economia colaborativa” nos media e no audiovisual, durante uma sessão da cimeira New European Media.
[trailer de “Café e Cigarros, de Jim Jarmusch]
Antes de descobrir a América, Joana Vicente decidiu fazer vida com o marido em Paris. “Falávamos os dois francês e era um território neutro, estivemos lá um ano”, recorda.
A experiência não foi muito interessante. “Senti aquela coisa de ser imigrante, de as pessoas acharem que o nosso francês não é perfeito, de telefonar para as informações e perguntarem três vezes a mesma coisa, ainda que tenha sido fácil perceberem, só para nos mostrarem que somos estrangeiros”, recorda.
Nessa altura, foi convidada a trabalhar como assistente de Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004), a ex-primeira-ministra que então se tornara deputada ao Parlamento Europeu.
“Ela era uma pessoa fantástica”, recorda. “Fazia o papel de assistente, escrevia-lhe discursos, servia de assessora de imprensa. Lembro-a como uma pessoa de uma curiosidade intelectual infindável, ouvia todos os pontos de vista, achava que tinha essa obrigação. Ela também gostava muito do meu marido e estávamos na época dos primeiros computadores portáteis. Como íamos à América de férias, ela pediu logo para lhe comprarmos um computador e aprendeu a usar. Tinha numa curiosidade imensa por tudo.”
Em viagem
Joana Vicente nasceu em Macau (prefere não dizer em que ano). Os pais, lisboetas, estavam a trabalhar no antigo território português, como arquitetos. Por muitos anos, viveu entre a Madeira, o continente e Moçambique. “Nunca houve um sítio que considerasse a minha casa”, constata, sem lamentar.
Mas quando passou um verão em Nova Iorque com o marido sentiu essa hospitalidade que faltava e achou que tinha mesmo que se estabelecer. Foi há 25 anos. Hoje tem dupla nacionalidade.
“As pessoas lá são curiosas, querem logo saber quem é e de onde vem, mas a pergunta-chave é sempre sobre o que faz. A profissão. Cá em Lisboa lembro-me de ser possível uma pessoa nunca perguntar pela profissão. Às vezes perguntava ao meu pai: ‘Então o que é que o seu amigo faz?’. E ele respondia: ‘Não faço ideia nenhuma’. Cá, a profissão não é parte integrante daquilo que se é como pessoa”, reflete.
“Em Nova Iorque não se pergunta de onde se vem ou qual é a nossa família, que era uma coisa que em Lisboa, pelo menos há alguns anos, acontecia muito. As pessoas definiam-se muito pelo extrato social, pela educação. Lá, a oportunidade para nos integrarmos está sempre presente e não tem necessariamente que ver com a origem ou o sucesso pessoal.”
Joana Vicente fala pausadamente e gosta de contar pormenores. Tem dificuldade em encontrar algumas palavras em português quando fala de cinema – “resources”, “sales agents”, “overbudget” –, mas é fluente na língua materna quando se afasta dos temas profissionais.
Conta que tem dois filhos: um rapaz, que estuda cinema e está a participar num programa de intercâmbio de estudantes em Madrid, e uma rapariga, que estuda jornalismo. Diz também que após muitos anos a viver em Tribeca, Manhattan, decidiu mudar-se para o bairro de Dumbo, em Brooklyn, mais próximo do local de trabalho.
Desde há seis anos, é diretora executiva da IFP, uma associação profissional que apoia produtores e cineastas independentes, quer sejam freelancers ou tenham empresas de produção. É a maior organização americana de cinema independente, criada em 1979.
“Como não há apoio público ao cinema, nós damos esse apoio, não tanto em dinheiro, mas sobretudo em termos de rede de contactos entre quem quer fazer filmes e potenciais financiadores ou agentes de vendas”, resume.
Recordamos-lhe que numa entrevista recente ao Observador, o realizador Ira Sachs lamentava ser cada vez mais difícil encontrar financiamento para filmes independentes e dizia serem raros os autores com obra continuada.
Joana Vicente concorda em parte. “Sim, fazer um filme é uma coisa bastante difícil”, comenta. “Mas com a digitalização é muito mais fácil filmar com pouco dinheiro e menos pessoas, desde que haja história, visão e atores.” A questão não está tanto em criar o objeto, mas em como distribui-lo.
“Penetrar no mercado, criar uma audiência para aquele filme e, a longo prazo, para aquele autor, essa é que é a dificuldade”, analisa. “Isto não significa repetir a linguagem ou o tipo de história nos filmes seguintes, à espera de com isso se criar uma marca. O público do cinema independente entusiasma-se com a surpresa e a qualidade, não com a repetição.”
Independentes criativos
A IFP tem vários programas e eventos dedicados a profissionais e ao grande público, incluindo a “incubadora” de empresas NY Media Center. Mas a iniciativa com maior projeção é a dos Gotham, prémios dedicados ao cinema independente e atribuídos desde 1991. A cerimónia deste ano tem lugar na segunda-feira, 28.
Nas últimas duas edições, o Melhor Filme de ficção dos Gotham Awards acabou, mais tarde, por ganhar também o Óscar: “O Caso Spotlight”, de Tom McCarthy, em 2015, e “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)”, de Alejandro González Iñárritu, em 2014.
[trailer de “O Caso Spotlight”, de Tom McCarthy]
A indústria dos independentes é a melhor fonte de criatividade no cinema americano, defende Joana Vicente – mesmo que depois esses realizadores transitem para as grandes produções. David Lowery, Ryan Coogler e Ava DuVernay são alguns dos exemplos.
“Os estúdios de Hollywood produzem filmes com orçamentos de 100 milhões de dólares ou mais, por isso correm poucos riscos. Os custos são tão grandes que eles têm de fazer filmes baseados em livros, que garantam logo notoriedade, ou então apostar nas sequelas e prequelas ou seguir fórmulas certas a pensar em certo tipo de públicos. Mas é ao cinema independente que Hollywood vai buscar novos realizadores, com uma visão forte e original. E nem sempre esses realizadores deixam de ser leais aos princípios do cinema de autor. De certa maneira, é o caso de Scorsese, que pode fazer filmes de 150 milhões, mas faz sempre filmes à Scorsese.”
O mesmo é válido para argumentistas e atores. Uns transitam do sistema independente para Hollywood, outros fazem o inverso. “Os atores mais estabelecidos também gostam do cinema de autor porque aí encontram papéis mais densos e interessante. Em Hollywood é tudo mais formulaico, são papéis com menos complexidade”
As funções na IFP fizeram-na afastar de produção pura e dura. “Continuo a ver-me como produtora de cinema, gosto dessa relação íntima e criativa com um projeto, por um certo tempo, e isso às vezes faz-me falta”, confessa.
“Quando se trabalha com pessoas como Brian de Palma, ou mesmo Jim Jarmusch, a participação criativa de um produtor é muito mais pequena, porque não é necessário, o que não quer dizer que não seja um trabalho de colaboração”, explica. “Se estamos a trabalhar com um realizador em primeira obra, o nosso trabalho é muito denso, todos os dias, em todas as cenas, para tentarmos que as coisas saiam o melhor possível, seja nos atores, no enquadramento ou no sítio onde estamos a filmar.”
Jurada no festival de cinema independente de Sundance, professora na Stern Business School da Universidade de Nova Iorque, Joana Vicente arranjou tempo para participar no Conselho da Diáspora Portuguesa, associação criada em 2012 para que os imigrantes portugueses, “através do seu mérito, talento e influência, contribuam para a afirmação universal dos valores e cultura” do país, lê-se no site oficial.
“Retomei os laços com Portugal através desta iniciativa”, diz. No ano passado, juntou-se ao ator Ricardo Pereira, que trabalha no Brasil, e ao produtor e realizador Cristóvão Fonseca, radicado em França (o mesmo que criou um documentário sobre o pintor Amadeo de Souza-Cardoso), para juntos refletirem sobre “a indústria audiovisual portuguesa e oportunidades de atrair produções estrangeiras para filmarem cá”.
“Se Portugal tiver como prioridade atrair a indústria audiovisual, tem de se fazer um investimento, não basta apresentar o sol e o bom tempo”, defende.
“Quando a produção de um filme chega a um sítio para filmar, gasta muito dinheiro durante um curto espaço de tempo e torna ativas várias outras indústrias à sua volta: as roupas para os atores, a comida, materiais para construir cenários, etc. Por isso, faz sentido dar incentivos, benefícios fiscais, por exemplo, a privados que queiram envolver-se nesta área em Portugal.”