Tudo começou com o pedido de refiliação de Francisco d’Oliveira Raposo, ex-dirigente do Bloco de Esquerda e membro do movimento CIT — Socialismo Revolucionário, representantes em Portugal de um partido marxista internacional. Coisa pouca para levantar suspeitas. No entanto, depois somaram-se outros pedidos de adesão de vários membros conotados com o movimento. O crescente interesse fez soar as campainhas da direção do Bloco de Esquerda e os primeiros sinais eram alarmantes: há um grupo que está a tentar “infiltrar” o Bloco de Esquerda, concluiu a direção. A resposta foi pronta: os responsáveis do partido decidiram abrir uma investigação a vários militantes do Bloco e a outros com pedidos de adesão pendentes conotados com o movimento. Os visados falam em “perseguição política” e de ataque à democracia interna.

Os contornos da história parecem saídos diretamente da obra de Homero, onde o narrador conta o episódio em que um grupo de gregos assalta Troia a partir de um gigantesco cavalo de madeira. Mas tudo aconteceu a 26 de novembro, na última reunião da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda, órgão máximo do partido entre convenções. Nessa reunião, não só foi vetado o pedido refiliação de Francisco Raposo, como foi aprovada a constituição de uma comissão de inquérito a nove pessoas conotadas com o movimento Socialismo Revolucionário. Na minuta dessa reunião, disponível na página oficial do Bloco, pode ler-se porquê:

“O Secretariado identificou um conjunto de adesões e pedidos de adesão provenientes de um grupo [de elementos que se identificam como membros do ‘Socialismo Revolucionário’] que, externamente ao Bloco de Esquerda e sem qualquer contacto com os órgãos legítimos do partido, decidiu infiltrá-lo”.

Para a direção do Bloco de Esquerda, pode estar em causa uma “eventual fraude ao princípio da adesão individual“. Uma suspeita agravada depois de o movimento em causa ter enviado à Mesa Nacional um “pedido de formalização da tendência Socialismo Revolucionário“. Os subscritores deste pedido, alguns deles já militantes do Bloco de Esquerda, estão agora sob investigação — um processo aprovado com 55 votos a favor, dez contra, quatro brancos e um nulo.

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A direção do Bloco de Esquerda recusou “comentar processos que estão a ser discutidos internamente“. O Observador sabe, no entanto, que a investigação já está em curso, que todos os casos vão ser analisados um a um para, segundo o partido, evitar avaliações injustas. O objetivo passa por concluir os inquéritos até à próxima reunião da Mesa Nacional do partido, a 8 de janeiro.

O Observador procurou alguns esclarecimentos junto dos representantes do movimento Socialismo Revolucionário, que preferiram “não divulgar nomes de membros por uma questão de proteção laboral”, mas sem grande sucesso. Sobre o processo em curso, os responsáveis do movimento dizem apenas: “Não responderemos a nenhuma pergunta sobre aquilo que é um processo interno do nosso partido, o Bloco de Esquerda”.

Quanto ao facto de só agora terem decidido formalizar o Socialismo Revolucionário como uma tendência — quando participam desde 2014 na atividade partidária através da Moção R “Crescer pela raiz” (moção minoritária) –, sugerem que foi uma “decisão muito natural“:

“Vimos que tínhamos em comum com as restantes correntes e tendências políticas no Bloco de Esquerda os princípios fundamentais. No entanto, a nossa tradição política tem a sua própria história, e não tínhamos identidade absoluta com nenhum dos grupos já existentes no partido. Portanto, como dissemos, muito naturalmente sentimos a necessidade de fundar uma tendência própria, tal como previsto pelos estatutos do partido”, justificam.

Ainda que não queiram prestar mais esclarecimentos à comunicação social, grande parte das críticas inerentes à decisão da direção do partido estão vertidas na página oficial do movimento, num texto intitulado “Carta aberta de solidariedade com o Socialismo Revolucionário“. A equipa de Catarina Martins não é poupada — fala-se em “purga” e tentativa de silenciamento.

“Este processo não passa de uma perseguição política sem qualquer precedente no partido, levada a cabo à revelia dos seus estatutos e Manifesto, por uma minoria com medo da crítica e do debate frontal de ideias, que vê o partido como sua propriedade e usa métodos burocráticos, contrários aos princípios do Bloco, para eliminar as vozes que se batem pela democracia e um programa socialista no Bloco. A burocracia tenta iniciar uma purga de elementos de esquerda dentro do partido“, criticam os responsáveis.

A direção do Bloco de Esquerda preferiu não comentar estas alegações, mesmo perante a insistência do Observador. Ainda assim, no interior do partido, há quem faça uma interpretação diferente desta “decisão muito natural” do movimento Socialismo Revolucionário: segundo eles, este grupo, ainda que irrelevante em termos numéricos e sem qualquer identificação com os valores bloquistas, estaria a tentar tomar o Bloco por dentro.

Quanto aos responsáveis pelo movimento, mantêm a expectativa de virem a ser aceites como tendência: “Tanto quanto sabemos, a direção nunca vetou a formalização da nossa tendência. Esperamos ainda uma resposta da parte da direção em relação à mesma, assim como à reunião que pedimos“, dizem os representantes do movimento, numa resposta enviada por email ao Observador.

Oposição interna em peso contra decisão da direção

Na última Convenção do Bloco de Esquerda foram a votos três moções: a “Moção A — A força da esperança”, de Catarina Martins e Pedro Filipe Soares, a “Moção B — Mais Bloco”, encabeçada por João Madeira, e a “Moção R — Crescer pela raiz”, cujos membros mais destacados são Catarina Príncipe, João Carlos Louçã e Nuno Moniz. A moção encabeçada por Catarina Martins acabaria por ter uma votação esmagadora, reduzindo a oposição a um lugar minoritário no interior do partido. Mas é essa mesma oposição interna que não poupa críticas ao comportamento da direção.

Num texto intitulado “Solidariedade dos membros da Moção B da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda“, publicado no site do movimento Socialismo Revolucionário, os representantes da Moção B acusam a direção de estar a violar o estatutos do partido e o direito à formação de tendências. E são inequívocos: “A divergência de opinião dentro do Bloco de Esquerda não poderá nunca dar lugar a comissões de inquérito“.

A democracia interna dentro do BE empobrece todos os dias com este caminho. Teremos de repensar os mecanismos que estão ao nosso alcance para que tal não aconteça”, criticam os responsáveis da Moção B.

Contactado pelo Observador, João Madeira, que encabeçou a moção, preferiu não fazer mais comentários e limitou-se a remeter para o texto citado.

As críticas mais duras, no entanto, vêm dos signatários da Moção R. Num texto intitulado “Um golpe inaceitável na democracia interna do Bloco de Esquerda“, também publicado na página oficial do movimento, estes militantes bloquistas falam em “democracia doente” e tiques estalinistas.

“A perseguição a um conjunto de militantes do Bloco sob a acusação de criticarem abertamente as opções da sua direção é uma prova de que a democracia está doente no Bloco e que o estalinismo não é assunto arrumado dentro do partido. Rejeitamos um Bloco de Esquerda fechado em si mesmo e com medo do que vem de fora, onde o direito à crítica é cada vez menos respeitado e o seguidismo cada vez mais prezado”, escrevem os representantes da Moção R.

Contactada pelo Observador, Catarina Príncipe, representante desta moção, preferiu não responder às questões e também remeteu para o texto citado.

Francisco Raposo: a personagem principal que virou secundária

O veto ao pedido de refiliação de Francisco d’Oliveira Raposo acabou por servir de pretexto para a troca de acusações entre a direção do partido, de um lado, e os membros do Socialismo Revolucionário e as restantes moções minoritárias, do outro.

Antigo dirigente do Bloco de Esquerda, Francisco Raposo decidiu deixar o partido em 2007, descontente com o apoio à candidatura do partido à candidatura presidencial de Manuel Alegre e desapontado com “a projeção dada a uma visão de sindicalismo de conciliação de classes em detrimento do trabalho de décadas desenvolvido, entre outros, por vários dirigentes sindicais do BE, no campo de um sindicalismo de classe, democrático e combativo”.

Agora, tinha encontrado motivos para voltar. Num texto intitulado “Eu e o BE – Razões de um regresso“, este antigo dirigente bloquista reconhece que o partido “conseguiu ser polo de atração de novas camadas de ativistas” e tornar-se naquilo que sempre defendera: num criador “de fortes núcleos locais” capazes de alargarem “a ação política às comunidades, locais”. O Bloco, escreveu Raposo, tinha recuperado uma “dinâmica” que corresponde “aos interesses políticos dos trabalhadores e da juventude”. “Para esse projeto estou disposto a contribuir“, escreveu então Raposo.

Os argumentos de Francisco Raposo não colheram a simpatia da maioria da direção do Bloco de Esquerda, que vetou o pedido de refiliação do seu ex-dirigente.

Ao Observador, fonte oficial do Bloco de Esquerda explica que, “tratando-se da refiliação de um ex-militante e ex-dirigente do Bloco de Esquerda, a ratificação é remetida à Mesa Nacional sob parecer prévio da Coordenadora Concelhia”, liderada, neste caso, por Ricardo Robles, deputado municipal do partido em Lisboa.

Ora, analisado o processo de Francisco Raposo, continua a mesma fonte, a “coordenadora concelhia de Lisboa emitiu o seguinte parecer: dado os motivos da sua anterior desfiliação do Bloco de Esquerda e a sua atuação pública de continuada crítica e oposição à atividade do Bloco de Esquerda e seus dirigentes, ao longo dos últimos anos, o parecer da concelhia é negativo. A Mesa Nacional foi informada do parecer e decidiu, por voto secreto, recusar a refiliação”. O processo, reiterou fonte oficial do partido, “está encerrado“.

O Observador tentou contactar Ricardo Robles, responsável pela Coordenadora Concelhia que emitiu o parecer negativo sobre Francisco Raposo, para perceber que evidências estavam na base deste parecer, mas não teve qualquer resposta até à hora de publicação deste artigo.

Em declarações ao Observador, Francisco Raposo começa por explicar que desde o momento em que ajudou à fundação do partido sempre se assumiu com militante do CIT. “Nunca o escondi. O Francisco Louçã e o Luís Fazenda, por exemplo, sempre o souberam, bem como a totalidade dos membros do BE com que trabalhei no Bloco e depois de ter saído. Fui, por duas vezes, eleito para a Mesa Nacional do BE. Na primeira reunião desse órgão em que participei, deixei clara a minha filiação no CIT. Aliás, esse assumir de militância no CIT faço-o igualmente no movimento sindical, nomeadamente no Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa e em diversas instâncias da minha central sindical, a CGTP e nos movimentos sociais em que participo”.

Desta vez, no entanto, a direção do partido entendeu que Raposo não reunia condições para integrar o partido. Porquê? O ex-dirigente bloquista diz não saber. “Até à data aguardo a justificação política da minha não aceitação”. O email que enviou para os responsáveis máximos do Bloco continua sem resposta.