Esta sexta-feira a Terra tremeu nos Açores, literalmente, mas foi o Tremor #4 o maior abalo que se fez sentir na ilha de São Miguel. Por estes dias, o arquipélago entra pelas páginas da imprensa internacional com um dos eventos culturais mais interessantes criados na Europa nos últimos anos.

A razão deste fenómeno já foi apresentada neste artigo pela voz de Márcio Laranjeira, o diretor criativo do festival. E ele tinha razão, quando escolheu a palavra que melhor define o Tremor: Açores. Não que fosse difícil criar uma estrutura logística e com idêntica imaginação numa qualquer serra ou cidade pequena do interior de Portugal continental (que já existem), mas porque estas ilhas têm uma atmosfera e um ritmo absolutamente singulares.

E também porque a organização soube construir uma mais valia para São Miguel, que vai muito para além do lucro. Não é isso o mais importante, mas sim o contributo cultural que o evento oferece às pessoas da ilha – deram um bom exemplo logo na terça-feira, com as honras de abertura do festival a serem dadas às crianças da escola de música de Rabo de Peixe.

Mas também aos forasteiros, algumas centenas apenas, mas indiscutivelmente deslumbrados, o que alimenta o passa-palavra e dá espaço para que o festival consiga crescer (bem e não muito, para não perder a graça).

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O Tremor desta ilha é muito mais que um festival

O grande dia do Tremor é este sábado, mas o festival começou na terça-feira com um conjunto de atividades diárias que incluíam, por exemplo, caminhadas e atuações no meio do mato, sessões de cinema, workshops e concertos surpresa. Mas não foi algo que tenha dado particularmente nas vistas.

O Tremor quase não se fez notar, a não ser pelo som das colunas de rua ali perto das Portas da Cidade, onde fica a sede da organização e de onde saía a emissão da Antena 3. À hora de almoço, nos restaurantes, não se viam pessoas com as pulseiras de livre trânsito no pulso, apenas a movida de mais um dia de semana. Quem por aqui tenha passado sem saber que havia um festival a decorrer na ilha, foi-se embora na ignorância.

As atividades só arrancaram às 15h (meia-dúzia de minutos depois do abalo real), com o segundo e último Tremor Todo o Terreno by Merrell, uma experiência guiada pelo som do músico e compositor holandês Jacco Gardner.

O conceito é simples de descrever: trata-se de uma caminhada de uma hora por trilhos da ilha, limitada a pouco mais de três dezenas de pessoas (as inscrições esgotaram num ápice), até um destino surpresa onde se encontra o artista em carne e osso.

De antemão, as pessoas receberam um ficheiro digital com um tema composto por Jacco Gardner, que serviu de banda sonora para o caminho, construído com inspiração na paisagem e com o propósito bem definido de fazer a ponte com a música que iria ser ouvida no destino. Se a ideia é bonita só de pensar, imagine-se de percorrer.

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As carrinhas da organização deixaram o pequeno grupo no ponto de partida, poucos minutos depois da hora marcada. Adiante pelo trilho, eis os Açores em todo o seu esplendor. Os montes vulcânicos, ora negros ora revestidos por floresta cerrada, uma paisagem verde e húmida com subidas e descidas e pedras que escorregam, um caminho com passagem pela Lagoa Branca (reserva artificial) e pela Lagoa Raza, até chegar às magníficas Lagoas Empadadas, o destino onde Jacco Gardner terminou a pintura eletrónica ambiente.

Foi uma experiência que juntou a paisagem selvagem e rural com a música dos dias de hoje, com um bónus que não pareceu enervar ninguém: o sinal “sem rede” no telemóvel foi quase uma constante.

De regresso a Ponta Delgada, fomos obrigados a desistir da ida ao Teatro Micaelense, onde iria decorrer uma sessão de “talks” (conversas) sobre as mulheres na música. O calendário do dia exigia escolhas (e inscrições) e os concertos secretos foram uma delas.

O conceito Tremor na Estufa é igualmente fácil de explicar: forma-se uma fila para um autocarro que nos leva para um sítio qualquer para ver um concerto de um artista que não sabemos qual é. Os festivaleiros adoram a ideia e nem sequer parecem querer furar o segredo, o interesse é genuíno e despreocupado.

Foi mais ou menos assim que acabámos com um aviso, por volta das seis da tarde: “levem o documento de identificação”. Porquê? Porque um desses concertos surpresa aconteceu num hangar de manutenção da Sata no Aeroporto João Paulo II. Por baixo de um avião da companhia aérea (numa notável jogada de marketing do patrocinador) o Conjunto Corona atuou durante pouco mais de meia-hora para um grupo de apenas 50 pessoas – todos tivemos de passar pelo controlo de segurança habitual dos aeroportos, daí a necessidade do documento de identificação.

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Foi engraçado assistir às reações das pessoas, onde se incluíam crianças, que escolheram entrar nesta lotaria dos espetáculos surpresa. Hip-hop num hangar tem uma qualidade sonora que não é difícil de imaginar (é péssima) mas, fosse o que fosse, “ia tudo à frente”. Foi ver pessoas de todas as idades a bater o pé e palmas ao som da banda do Porto, que com inteligência e graça se soube adaptar à circunstância, também para eles, talvez algo inesperada.

À hora de jantar, continuou a não se sentir o pulsar do festival. As ruas de Ponta Delgada um sossego, os restaurantes cheios, as pessoas sem pulseiras no punho, uma sexta-feira à noite como de costume e uma refeição sem pressas.

Do centro seguimos para a ponta oeste, mais precisamente para o Arco 8, talvez o espaço de diversão noturna mais importante da cidade, atualmente. Foi este o ponto de encontro de todas aquelas pessoas que andaram dispersas pela cidade e pela ilha, durante o dia, e acabou também por ser outro momento que traduziu bem a dimensão e o hype do Tremor: é com naturalidade que nos encontramos numa fila ao lado de Adolfo Luxúria Canibal (vocalista dos Mão Morta) ou a beber uma cerveja junto a Casper Clausen, dos Efterklang.

O Tremor é um evento com uma matriz vincadamente alternativa. Não é feito de nomes sonantes (salvo raras exceções), mas é uma oportunidade única de apresentar à ilha um conjunto de artistas e sonoridades diferentes, é um evento que puxa pelas gentes da terra, que cria oportunidades de trabalho, que dinamiza espaços (bares, galerias, espaços públicos e até lojas de roupa), a economia regional e, acima de tudo, está a tornar-se num excelente pretexto para visitar os Açores.

Este sábado é o dia D, o Tremor começa às 10h da manhã dedicado às crianças e prolonga-se até às seis da madrugada de domingo. Os dois cabeças de cartaz são os Mão Morta (que atuam pela primeira vez em São Miguel) e o angolano Bonga. De resto, são maioritariamente artistas que poucos conhecem, mas é essa surpresa e diversidade a grande riqueza do festival. E, indiscutivelmente, acontecer nos Açores.

O Observador viajou a Ponta Delgada a convite do Festival Tremor, com o apoio do Turismo dos Açores e da SATA.