A exposição “Um Olhar Real. Obra Artística da Rainha D. Maria Pia”, aberta ao público na Galeria de Pintura do Rei D. Luís I, no Palácio Nacional da Ajuda, apresenta um acervo “escondido” que se encontrava em espaços não visitáveis do museu. A ideia original seria organizar uma exposição sobre a obra artística dos membros da casa real que viveram na Ajuda, até ao momento em que se decidiu restringi-la a Maria Pia. A soberana era uma Saboia orgulhosa, que assumiu convictamente o seu papel de rainha de Portugal, tal como adiante veremos.
Com o comissariado de José Alberto Ribeiro e João Vaz e o projeto de arquitetura de João Herdade, a exposição está organizada tematicamente através de um fio condutor que se manifesta numa cor cinzenta que percorre o seu perímetro e pela utilização de cores que emprestam uma enorme variedade às salas, diferenciando os vários núcleos.
João Vaz refere, a propósito: “é uma espécie de labirinto orientado que permite a passagem de uma sala para outra, funcionando cada uma quase que de maneira independente”. Por questões de espaço e logística, são apresentadas 210 peças originais e 146 reproduções de desenhos, aguarelas e fotografias.
Para confirmar a proveniência física das obras de Maria Pia, houve a necessidade de se recorrer ao Arrolamento Judicial, dirigido pelo juiz Taborda Magalhães entre 1911 e 1913, no qual ele fez registar o que, à época, estava no Palácio. Privilegiaram-se também, além de inúmeras consultas bibliográficas, pesquisas documentais na Torre do Tombo mas, sobretudo, no Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda, há pouco transferido, quase na totalidade, para a Biblioteca da Ajuda. A análise de largas dezenas de cartas e de outros documentos permitiram conhecer melhor alguns aspetos da vida da rainha e, deste modo, estabelecer relações com a sua obra.
Na sala de entrada, podemos ler:
“A rainha tem um ar ilustre e elegante. A cabeça, de aspeto nobre e simpático, é enquadrada por magníficos cabelos loiros. Os olhos escuros têm um olhar profundo. A boca, de um desenho puro, é expressiva e enérgica. O sorriso é encantador. O seu andar é de uma grande elegância e de um desembaraço cheio de distinção e também de energia. Esta soberana tem verdadeiramente um porte real”.
Retrato físico com uma aproximação ao psicológico que, sobreposto a uma fotografia sua e a um autorretrato a carvão, figurando defronte de uma escultura também de sua autoria, constituem como que uma síntese da sua obra.
Estudos e paixões
Na sala designada de Influências e Aprendizagens, o público fica a perceber como a rainha se torna artista-amadora, com uma primeira influência da mãe, Adelaide de Habsburgo, que morreu quando a princesa tinha 7 anos. Porém, segundo João Vaz, “ da nossa 1ª infância recordamos momentos que fixamos, e é natural que a princesa, ao ver a mãe a desenhar e a aguarelar, também ela própria desenhasse e fizesse as suas brincadeiras no papel”.
À medida que ia crescendo, começa a ter o seu programa de estudos – semelhante ao da generalidade das suas congéneres europeias –, de que faziam parte, de entre outras disciplinas, o desenho e a pintura. O seu professor de desenho, Ângelo Beccaria, terá sido, aliás, um dos responsáveis pelo aprofundamento do gosto que Maria Pia adquiriu pela natureza e pela paisagem, nascido certamente nas suas brincadeiras pelas montanhas e florestas piemontesas, quando criança.
Já a sua “paixão” pelas flores foi-lhe incutida pela mãe e por Virgínia Panizzardi, sua mestra de pintura, sua amiga e confidente. A propósito, destaca-se nesta exposição o Álbum das Flores, onde a Rainha pinta com flores e ramos minúsculos as duas ultimas letras do alfabeto, inscrevendo por baixo a palavra “Bonheur”, revelando um estado de espírito muito positivo. De resto, em todas as páginas se vislumbra facilmente o virtuosismo da sua pintura nesta tipologia.
Em Portugal, enquanto rainha, toma para professor Enrique Casanova, pintor que entra na corte cerca de 1880, contratado para dar lições de pintura a D. Carlos e ao infante D. Afonso. Acompanhada tantas vezes por ele, cultivou a apetência pelas paisagens, cidades e vilas de Portugal, registando tudo o que podia através da escrita, do desenho, da pintura e da fotografia.
Quando casou, aos 14 anos, experimentou um choque de culturas e tradições. Viu coisas boas, mas faltava-lhe muito do que tinha na sua Itália, não sendo de menor importância o conforto a que se habituara e que dizia não dispensar. Fez obras nos paços reais, sobretudo no da Ajuda, que adornou e recheou segundo o seu gosto estético, deixando um importante espólio, talvez sem paralelo em grande parte dos outros palácios europeus. Nesta exposição podem ser vistas algumas das peças por ela adquiridas, bem como a sua replicação em desenho e aguarela.
Foi gastadora, faceta que, segundo Maria Antónia Lopes, herdou de seu pai. Gastou consigo, mas com os outros também, na sua ação filantrópica, exercida “por amor aos homens”. A sua generosidade e piedade materializaram-se no apoio às creches, à infância desvalida, nas esmolas que não recusava, na criação do Instituto Infante D. Afonso (Odivelas), cujas alunas protegeu e acarinhou sempre, chegando a convidá-las para o Paço do Estoril, onde lhes deu lembranças pelo Natal. Foi madrinha de gente pobre. Visitou hospitais, como de uma vez que foi ao de S. José, não hesitando em criticar a mistura de tísicos com outros doentes e questionando o não funcionamento dos caloríferos existentes; aí conversou com vítimas de um incêndio, dando-lhes o alento e a atenção de que tanto precisavam. No seguimento destas ações, retratou um rapaz, ainda criança, encostado a uma árvore, andrajoso, descalço, de olhar absorto; não foi certamente a curiosidade que a moveu, mas a denúncia de uma situação social que a impressionou e que ela não desejava que se prolongasse.
A diplomata pintora
Procurou, na parte que lhe cabia, contribuir para a credibilização interna, mas sobretudo externa, da Dinastia e do País. E para isso gastou igualmente. Estar no mesmo plano de prestígio das outras soberanas era por certo um objetivo a alcançar. Para tanto viajou, mostrou-se, e cativou. Conquistou a comunicação social estrangeira, que soube seduzir. Começaram a aparecer nos jornais notícias sobre as suas viagens, com destaque para as estadas em Paris, Itália, Côte d’Azur, os tratamentos a que se submetia, as visitas que fazia e recebia, os itinerários projetados. Desta sua atividade resultaram desenhos e aguarelas em que predominam elucidativos aspetos da vida urbana da capital francesa e da costa que a assessorava no período estival.
Foi igualmente uma diplomata, discreta mas eficaz. Apercebendo-se das dificuldades que o país atravessava e de acordo com o chefe do governo e com D. Carlos, Maria Pia empreendeu ações diplomáticas, quase sempre junto de seu irmão, o rei Humberto de Itália. Foi, por exemplo, decisiva na resolução de situações financeiras que, de outro modo, teriam levado o país à bancarrota. Por cá, intervém politicamente, no período que se seguiu à revolta de 31 de janeiro de 1891, no Porto, ao deslocar-se para a Granja, a dar testemunho do reconhecimento da família real para com aqueles que rapidamente fizeram debelar essa tentativa de impor o regime republicano ao país. Do facto deixou desenhos que a exposição exibe.
Maria Pia foi uma princesa tímida e, talvez por essa razão, nunca expôs uma aguarela ou um desenho, tendo apresentado publicamente apenas quatro painéis de fotografia. Era uma artista intimista que pintava para si e para o pequeno círculo que a rodeava. Mas era também uma mulher de impulsos que mudava de atividade quando menos se esperava, deixando por concluir muitas das suas aguarelas, algumas das quais guardava, fosse porque gostasse do que estava feito, fosse para terminá-las mais tarde.
Num plano mais íntimo, ao vir para Portugal em outubro de 1862, Maria Pia traria expetativas altas em relação ao casamento com D. Luís, tal como o demonstram as cartas trocadas entre ambos no período do namoro. A realidade, porém, não as confirmou. Pouco depois da sua chegada, soube pelo próprio monarca que ela fora uma “segunda escolha”, o que a abalou profundamente, chegando a afirmar que jamais seria capaz de vir a amá-lo. Convenceu-se, porém, que poderia manter o casamento na base de uma verdadeira amizade, mas não do amor. O estado da relação melhorou, entretanto, com o nascimento dos filhos, o de Carlos em 1863 e o de Afonso em 1865. Aliás, a alusão à família também se revela na exposição, ao serem exibidas as páginas aguareladas do Álbum das Flores, das quais a rainha destinou cinco para tal fim, pintando nelas o nome de todos.
Era, com efeito, amiga do marido, com quem discutia os mais variados assuntos, mesmo os que se relacionavam com a situação política do país.
E apesar da relação que D. Luís mantinha com a atriz Rosa Damasceno – que era do conhecimento da rainha –, e a paixão platónica (?) dela por João Benjamin Pinto ou por Tomás de Sousa Rosa, o casamento perdurou. Nesse tempo, era uma situação muitas vezes aceite, comodamente, não raro nas camadas mais altas da sociedade.
Como mãe, Maria Pia sabia que D Carlos, como príncipe real, teria Casa própria e seria um dia entronizado. Protegeu por isso o infante Dom Afonso, o segundo filho, um príncipe esquecido e menorizado que, não obstante ter ficado conhecido como “O Arreda”, acabou por ter alguns papéis importantes na nossa História: foi o último vice-rei da Índia e herdeiro presumível do trono.
Princesa de Itália e rainha consorte de Portugal durante o reinado de seu marido, D. Luís I, D. Maria Pia foi mãe de D. Carlos I e do infante D. Afonso, duque do Porto. Revelou-se uma mulher inteligente, tímida, generosa (o povo chamava-lhe o Anjo da Caridade) e gastadora ao mesmo tempo; foi política e diplomata.
Foi artista. A exposição e o catálogo ilustram bem este lado da sua vida, em que cultivou primordialmente o desenho, a aguarela e a fotografia.
Está patente até 30 de maio na Galeria do Rei D Luís I, no Palácio Nacional da Ajuda.