A acreditarmos em “Blade Runner 2049”. De Denis Villeneuve, continuação do clássico de Ridley Scott estreado há 35 anos, no futuro não haverá sogras, nem chatices conjugais. Um homem poderá adquirir uma tecnologia que instala em casa e que projecta uma imagem holográfica e interactiva da esposa perfeita, baptizada Joi pelos seus criadores. Joi tanto pode receber o “marido” vestida de dona de casa dos anos 50, como usando as roupas mais “trendy” em 2049. E o “esposo” pode também adquirir um aparelho que lhe permite levar Joi a passear consigo fora de casa. Se bem que no futuro de 2049 nada mais haja para ver do que chuva permanente e uma metrópole imensa e caoticamente multicultural (agora com mais russos, mais indianos e mais africanos) onde faz sempre noite. De “Blade Runner: Perigo Iminente” para “Blade Runner 2049”, a tecnologia evoluiu muito. O mundo, esse, ficou ainda pior.

[Veja o “trailer” de “Blade Runner 2049”]

Nos 35 anos que medeiam entre a acção dos dois filmes, houve um “apagão” geral que limpou todos os registos electrónicos e demorou dez dias a resolver. A Tyrell Corporation foi encerrada pelo governo por fazer replicantes perigosos para a humanidade, e depois comprada pelo mega-milionário Niander Wallace. Este, além de ter retomado a produção de replicantes, agora incapazes de se revoltarem, salvou o mundo da fome com as suas culturas intensivas sintéticas. O resto é familiar: uma cidade imensa e permanentemente nocturna, poluída, sobrelotada, berrante de néon, dominada por gigantescos anúncios virtuais e protegida de um oceano furioso por diques maciços. Para lá dos seus limites, há gigantescos aterros de lixo onde sobrevivem, explorando ou sendo explorados, os marginais, os rejeitados, os azarados e os fugitivos, e os restos desertos de grandes metrópoles do passado.

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[Veja a entrevista com Denis Villeneuve]

“Familiar”, aliás, é uma palavra que se aplica bem a esta continuação do filme de 1982, um marco no cinema de ficção científica (FC) — baseado num livro de Philip K. Dick, embora pouco fiel à sua história –, pelo que trouxe de novo e influenciou o género. Uma representação coerente, homogénea, verosímil e tecnologicamente aliciante de um futuro distópico, onde se desenrolava uma intriga policial de acção umbilicalmente relacionada com ele e que tratava de temas perenes da FC, caso da possibilidade dos seres artificiais adquirirem características humanas, nomeadamente consciência e emoções, e quererem ser autónomos de quem os criou e programou. Podendo até revoltar-se para o conseguir.

[Veja a entrevista com Ryan Gosling e Harrison Ford]

A referida familiaridade tem a ver com o facto de muitas das pessoas envolvidas em “Blade Runner: Perigo Iminente” continuarem no projecto de “Blade Runner 2049”. É o caso do produtor Bud Yorkin, de Hampton Fancher, um dos dois argumentistas (agora acompanhado por Michael Green), de Ridley Scott, produtor executivo e supervisor do filme, que delegou a realização a Denis Villeneuve, de actores como Edward James Olmos e Sean Young, com breves participações (virtual e “sonora”, a de Young), e, claro, Harrison Ford. Até a música (de Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch) “prolonga” e intensifica a de Vangelis. Ou seja, “Blade Runner 2049” mantém uma continuidade total com o primeiro filme, desde a caracterização, pormenorização e exploração visual e narrativa do mundo onde ele se passava, até uma intriga que continua a ser policial e inseparável das suas circunstâncias. Sem esquecer as especulações científico-filosóficas, com destaque para a interacção entre humano e artificial. A fita vai entrar para a história do cinema como a primeira onde há um (púdico) “ménage à trois” entre dois humanos e uma criatura sintética.

[Ouça música do filme]

https://youtu.be/K5eJ79kod1Q

Revelar muitos pormenores sobre a intriga é estragar o prazer do filme ao espectador. Mas podemos adiantar que Ryan Gosling interpreta um replicante da nova geração, agente da polícia de Los Angeles e com um número de série começado por K em vez de nome (é Joe, para os mais íntimos, pronto), encarregue de eliminar todos os replicantes “defeituosos”, do tempo da Tyrell Corporation e de antes do “apagão”. E que numa dessas missões, K faz uma descoberta que põe um enigma e uma impossibilidade bio-tecnológica a descoberto, ameaça operar uma revolução no seio da humanidade e dos andróides, e traz de novo para a cena um Rick Deckard desaparecido há muitos anos, depositário do segredo de um milagre do qual foi parte integrante.

[Veja a entrevista com Ana de Armas]

Tal como Ridley Scott fez em “Blade Runner: Perigo Iminente”, só que agora dispondo de um orçamento colossal (cerca de 200 milhões de dólares) e de efeitos especiais à medida, Denis Villeneuve, que já se tinha distinguido no cinema de FC com “O Primeiro Encontro”, esmera-se na recriação e na amplificação do futuro distópico e híper-“high tech” de “Blade Runner: Perigo Iminente”. O filme, com fotografia de mestre Roger Deakins, tem uma espantosa, aparatosa e detalhadíssima arquitectura visual, quer se passeie pelo ar por uma Los Angeles que parece não ter fim, quer ande pelos arquivos e pelos gabinetes de um “design” depurado e gelado da Wallace Corporation; quer entre no prédio superlotado onde K vive e o acompanhe ao seu minúsculo apartamento, quer visite uma Las Vegas-fantasma coberta de pó amarelo radioactivo mas onde ainda funcionam “jukeboxes” que em vez de discos de vinil, têm hologramas em miniatura dos cantores e das bandas (Elvis, Marilyn e Frank Sinatra “vivem” e dão espectáculos neste futuro), ou vá a um laboratório onde se fabricam memórias “humanas” para replicantes.

[Veja a entrevista com Sylvia Hoeks]

A dimensão visionária de “Blade Runner: Perigo Iminente” é aumentada, melhorada e reforçada em “Blade Runner 2049”, os efeitos especiais continuam a ser serviçais de uma ideia de futuro, da história e dos seus elementos especulativos, e não meramente exibicionistas, e a acção só se manifesta quando a narrativa o justifica. Ryan Gosling está bem no replicante emocionalmente neutro à superfície mas adepto em privado do simulacro de sentimentos e afectos humanos, Robin Wright é a sua máscula superior humana, o Deckard de Harrison Ford está envelhecido mas tem a desconfiança, o sarcasmo e os reflexos ainda bem activos, Jared Leto surge devidamente sinistro num Wallace parte carne e osso, parte implantes electrónicos, Ana de Armas faz a tocante Joi virtual com aspirações a sentir e a amar, e Sylvia Hoeks é portentosa em Luv, a ciber-cabra de serviço, alma danada de Wallace, que apesar de verter furtivas lágrimas, luta e mata que se farta enquanto proclama a sua superioridade artificial.

[Veja a entrevista com Robin Wright]

“Blade Runner 2049” podia não ser tão longo (quase três horas)? Podia. Podia ser um pouco menos solene? Podia. Mas são detalhes. Denis Villeneuve assinou uma continuação que, coisa raríssima, não desmerece do original, mesmo já não beneficiando do efeito de espanto e de novidade deste, uma fita de ficção científica que deixa a anos-luz praticamente tudo o que faz por aí no género. Trinta e cinco anos depois, o futuro continua a ser negro, chuvoso, atravancado e perigoso, mas de visita imprescindível.

[Veja os bastidores de “Blade Runner 2049]