Há quase 90 anos Walt Disney estreava aquele que viria a ser um dos personagens mais emblemáticos da cultura pop na curta Steamboat Willie. Esta não foi a primeira animação com o famoso rato Mickey produzida por Disney e por Ub Iwerks, mas foi a primeira a chegar ao público. As pedras basilares daquilo que viria a ser a era dourada do cinema de animação estavam instaladas, e Disney e os seus estúdios começaram a desenvolver muitos dos seus personagens clássicos, ao que logo se seguiram produções emblemáticas da concorrência, como Felix the Cat e o grande concorrente da época, Max Fleischer, cujas produções rivalizavam com as de Disney, em especial Betty Boop e a adaptação de Popeye the Sailor.

Avancemos até 2014, à conferência da Microsoft na E3, onde Cuphead conquistou a atenção de todo o mundo com um pequeno trecho de algo que parecia retirado exatamente desse período do cinema, como se Fleischer não tivesse morrido em 1972 ou que tivesse agora uma segunda vida onde se tinha tornado um game artist. Pouco se sabia sobre aquele jogo e, apesar de não existir nada que se pudesse jogar, já havia uma certeza: Cuphead era o jogo que toda a gente queria jogar mesmo sem se saber especificamente do que tratava.

Lançado apenas há uma semana, é fácil admitirmos que os três anos de espera desde a revelação valeram a pena. Não existe nada sequer próximo da experiência que Cuphead nos traz, ao conseguir mimetizar técnica e artisticamente a vibração única do cinema de animação dos anos 30.

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Para isso foi necessária a entrega dos dois irmãos Moldenhauer, parte integrante e basilar do StudioMDHR Entertainment, cujo primeiro trabalho de sempre é justamente este Cuphead. Influenciados pela animação dos anos 30, este projeto de verdadeira paixão e entrega artística começou a ser desenvolvido em 2010, quando Chad Moldenhauer começou a reproduzir as técnicas de animação do século passado adaptadas à tecnologia atual. O artista desenhou todas as frames à mão e compôs a animação e pintou os personagens em computador, com uma ligeira nuance que implicou mais do dobro dos desenhos produzidos por segundos de animação: nos anos 1930 os filmes corriam a 24 fps, e o jogo foi produzido a 60 fps.

Para manter o espírito original do sistema de animação, os irmãos Moldenhauer decidiram manter o processo de produção relativamente fechado, onde para além do game design produzido por Jared Moldenhauer, apenas foram adicionados à equipa mais três elementos, um programador, um animador e um músico de jazz (podem ouvir a banda-sonora original completa aqui).

Cuphead é um dos mais delicados e soberbos exemplos de nostalgia que o mercado dos videojogos alguma vez produziu, não apenas pela sua direção artística, que presta a derradeira homenagem à animação do período dourado do cinema, mas também aos jogos da NES e SNES que marcaram a nossa infância e juventude. Um run and gun que nos coloca numa missão simples: controlar Cuphead (e o seu irmão Mugman, se estivermos a jogar em modo cooperativo) a derrotar uma série de bosses, na tentativa de recolher as suas almas para as devolver ao Diabo, pagando assim a sua dívida para com ele.

Muita gente tem considerado este jogo dificílimo, e nós temos de concordar, mas discordando ao mesmo tempo. Não é Cuphead que é extraordinariamente difícil, foi o restante mercado que foi ficando progressivamente mais fácil, com medo de frustrar os jogadores.

Se Cuphead presta uma homenagem artística ao grande período de estruturação do cinema de animação, mecanicamente homenageia os jogos de meados dos anos 80 e 90. O que significa que o desafio do jogo passa (como passava nos jogos dessa época) por reconhecimento e memorização de padrões de ataque e movimento dos inimigos, onde a tentativa e erro de cada embate ajudava a construir a memória muscular do que tínhamos de fazer para ultrapassar um inimigo. Neste sentido, existe até uma atenuante desse período: este tipo de desafio que tivemos quando éramos miúdos necessitava de semanas ou meses de repetição, já que sempre que perdíamos tínhamos de voltar ao início, e Cuphead traz aquela exigência de qualquer jogo das últimas duas décadas: save points.

A única crítica que podemos apontar, e que aparentemente está já a ser resolvida pelos developers, é um bug na versão de PC que nos pode fazer perder horas de progressão ao tornar os saves ineficazes. Foi, infelizmente, o que nos aconteceu. Acabámos por perder horas a treinar os músculos e reflexos para derrotar alguns monstros, apenas para descobrirmos, ao voltarmos ao jogo, que a nossa save estava bem mais atrás do ponto a que já tínhamos chegado.

Cuphead é um gigantesco sinal de respeito e paixão pela arte, pelo cinema de animação e pelos videojogos. Uma das obras mais detalhadas e que transpiram labor de uma vida a cada momento de jogo, trazendo para a atualidade o cinema da era dourada como nenhum meio conseguiu fazer até hoje, o que resultou numa das experiências visuais mais bem conseguidas, belas e surpreendentes nos videojogos.

Um jogo coeso e sólido, com iguais partes de inovação a cada novo nível, repleto de criatividade e com um grande desafio. Um dos melhores jogos de um ano que está constantemente a trazer-nos novos concorrentes a “melhores jogos do ano”? Certamente. E no topo disso arrisca-se a ser uma das experiências mais fabulosas da décima arte, ao mesmo tempo que presta uma homenagem digna à sétima.

Cuphead custa 19,99€ e é um exclusivo Xbox One em consolas, mas com crossplay para PC com Windows 10.

Ricardo Correia, Rubber Chicken