Quando se puseram a fazer filmes com Robert Downey Jr. no papel de Sherlock Holmes e transformaram o detective intelectual de Conan Doyle num misto de herói de acção e de “dandy” estouvado, deturpando de forma chocante a sua natureza para tentar cativar o público adolescente que só vê fitas de super-heróis e de aventuras cheias de efeitos especiais, percebeu-se que seria apenas uma questão de tempo até que outra personagem clássica da literatura policial fosse passada ao crivo da “modernidade” e desfigurada por uma nova “releitura”, para a sacrificar nos altares das bilheteiras. E essa personagem é o Hercule Poirot de Agatha Christie, ridiculamente descaracterizado por Kenneth Branagh no “remake” de “Um Crime no Expresso do Oriente”, que este interpreta e realiza. Quem será a próxima vítima? O gordo Nero Wolfe de Rex Stout, emagrecido, arrancado às sua orquídeas, aos seus livros e às suas refeições “gourmet”, e atirado para correrias e tiroteios nas ruas de Nova Iorque?

[Veja o “trailer” de “Um Crime no Expresso do Oriente”]

Qualquer semelhança entre este “novo” Poirot de Branagh e o de Agatha Christie tal como ela o criou, e foi interpretado no cinema e na televisão por Albert Finney, Peter Ustinov e David Suchet (este o melhor e o mais fiel à personagem tal como a escritora a concebeu) é pura coincidência. Da farfalhuda e grotesca bigodaça à forma de atleta que lhe permite correr, saltar, andar à pancada (Poirot à pancada, santo Deus!) ou perseguir um suspeito pela estrutura de uma ponte de caminho de ferro, passando pela menorização das qualidades cerebrais, tudo aqui contraria a verdadeira personalidade do detective belga pequenino e gordinho do bigodinho de cera, egocêntrico e cheio de manias, com a obsessão da higiene e avesso ao contacto físico, que resolve os casos graças às suas “célulazinhas cinzentas”.

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[Veja a entrevista com Kenneth Branagh]

O Poirot personificado por Kenneth Branagh é, assim, um Poirot fantasioso e disparatado, completamente adulterado, do aspecto físico à personalidade, da psicologia aos tiques, concebido para “vender” a espectadores jovens que não lêem livros, só folheiam “comics” de super-heróis, e nunca ouviram falar de Agatha Christie. Numa patética tentativa de “humanizar” a personagem (como se tal fosse necessário…), Branagh chega ao ponto de lhe arranjar uma namorada no passado, cujo retrato o detective traz sempre consigo e pela qual suspira à noite, antes de se deitar. E o sotaque exageradamente ridículo que lhe é posto na boca parece pertencer a uma paródia dos Monty Python à figura de Hercule Poirot.

[Veja a entrevista com Johnny Depp]

Sem qualquer comparação com o elegante, fluente, arrumado e pleno de “suspense” filme original realizado em 1974 por Sidney Lumet, muito fiel ao livro e com um distinto elenco internacional, (que incluía, e além de Albert Finney num irascível Poirot, Lauren Bacall, Richard Widmark, Jean-Pierre Cassel, Jacqueline Bisset, Sir John Gielgud, Sean Connery ou Ingrid Bergman, que venceria o Óscar de Melhor Actriz Secundária), esta nova versão de “Um Crime no Expresso do Oriente”, além de ter um prólogo “para encher” passado na Palestina (com um “gag” lamentável envolvendo excrementos de animais) e ser injustificadamente filmada em 65mm, é mal amanhada, confusa, de ritmo incerto e suspense anémico. O final imita o da versão televisiva onde o Poirot de David Suchet é posto perante um dilema de consciência relacionado com as suas convicções religiosas, mas aqui soa falso, postiço como a bigodeira de Branagh.

[Veja os bastidores da rodagem]

https://youtu.be/8SxOh9xaE6M

O elenco, ao qual não falta a obrigatória e anacrónica alteração da etnia de um dos principais protagonistas para preencher a quota politicamente correcta, está de novo cheio de nomes respeitáveis (Michelle Pfeiffer, Willem Dafoe, Derek Jacobi, Penélope Cruz, Judi Dench, Daisy Ridley, etc.). Só que o desastrado argumento dá-lhes pouca coisa para fazer, com personagens mal esboçadas ou abertamente caricaturais, e embora saia cedo de cena, apenas o Ratchett/Cassetti de Johnny Depp tem um mínimo de substância. Parece que este “Um Crime no Expresso do Oriente”, a ter sucesso, poderá ser o primeiro filme de uma nova série de adaptações ao cinema dos livros de Poirot. Mas se este desastre cinematográfico se transformar em desastre de bilheteiras, talvez Hercule Poirot, a memória de Agatha Christie e todos aqueles que recusam e execram este tipo de atentados à integridade de personagens ficcionais clássicas e bem-amadas, sejam poupados a mais indignidades.