“D. João é tão inteligente que não consegue viver, relativiza tudo, é incapaz de amar”, diz Luís Miguel Cintra. “É uma personagem que gostaria muito de ter interpretado enquanto ator, mas nunca aconteceu. Para mim, ele é uma espécie de duplo do Álvaro de Campos. É como no verso ‘merda, sou lúcido’. D. João e Álvaro de Campos vivem o desespero do inteligente.”
Por estes dias, em Guimarães, o encenador constrói um D. João à sua maneira, inspirado no libertino Don Juan. Depois de ter ensaiado no Montijo, em Setúbal e Viseu, está em residência artística na cidade minhota para criar o último trecho de “Um D. João Português”. A estreia acontecerá a 19 e 20 de janeiro no Centro Cultural Vila Flor, também em Guimarães.
Um ano após o encerramento do Teatro da Cornucópia, companhia lisboeta que fundou em 1973 juntamente com Jorge Silva Melo, Luís Miguel Cintra continua a fazer teatro – e mantém um olhar crítico sobre as políticas públicas para as artes. “Quando olho para trás só tenho desgosto, por isso, olho para a frente como se estivesse a começar”, afirma, em entrevista ao Observador.
“A gente passa 40 e tal anos na nossa terra a tentar provar que é possível, previne que não consegue aguentar e que acha que não há razão para reduzir o projeto às dimensões de um subsídio cortado para metade. Queriam que a gente continuasse? Não era possível. Há aqui algo viciado. É como se o Estado não acreditasse no que as pessoas dizem”, desabafa.
Refere-se aos motivos pelos quais a Cornucópia fechou portas a 18 de dezembro do ano passado – com um recital de Guillaume Apollinaire, perante centenas de pessoas. Cortes nos subsídios atribuídos pelo Ministério da Cultura não permitiram ao grupo continuar a atividade em moldes considerados adequados. Para o período 2013-2016 a subvenção foi de cerca de 300 mil euros.
Luís Miguel Cintra reafirma hoje que o Ministério da Cultura “nunca pôs a hipótese” de aumentar o montante do subsídio.
“Disseram que isso iria criar um caso excecional. Mas um caso excecional é o que se deseja que exista, e não que tudo seja normal. Mas o caso excecional escandaliza, porque não se trata todos da mesma maneira, segundo parece. Não podendo haver caso excecional, o Ministério perguntou o que era possível fazer. Não era possível fazer nada.”
Logo a seguir ao último espetáculo no ano passado, durante o qual o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa apareceu de surpresa, tentando na sede da companhia mediar entendimento entre o ministro Castro Mendes e Luís Miguel Cintra, a Cornucópia ainda tentou encontrar soluções junto do secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado. Mas presumivelmente nem para a preservação do acervo e do imóvel arrendado houve acordo.
Luís Miguel Cintra: “A Cornucópia vai fechar porque não há dinheiro para sermos a Cornucópia”
Desde então, o encenador não voltou a ser contactado por membros ou representantes do governo. Nem pela Presidência da República. “O Presidente teve aquele gesto simpático e solidário naquele dia, caiu muito bem. Não creio que tenha tido intenção de interferir em matéria que cabe ao Governo, por isso é normal que não tenha falado novamente connosco”, afirma. “Pela nossa parte, também não andámos atrás dele.”
Questionado sobre que avaliação faz ao trabalho de Castro Mendes, o fundador da Cornucópia não se alonga em comentários e diz-se “farto de burocracias”.
“Escuso de dizer o que penso do ministro. Conheci-o bem antes de ele estar no Governo. Como ministro, não sei se está a fazer bem ou mal, nem ando à procura de saber. No nosso caso, não era propriamente ele que tinha a pasta, era o Miguel Honrado. Estou desinteressadíssimo desses assuntos, estou farto. Não estou muito bem de saúde, não tenho paciência para assuntos de administração, que só nos fazem perder tempo.”
Voltando ao novo trabalho que tem entre mãos, Cintra explica que se inspirou no texto “D. João ou O Banquete de Pedra”, de Molière, publicado em 1665 (por sua vez inspirado no boémio Don Juan, criação de Tirso de Molina).
Além do original de Molière, Cintra utilizou também aqui uma tradução anónima de cordel, publicada em França em 1789. Encontrou-a na biblioteca da Fundação Gulbenkian. A versão de cordel deu-lhe “maior liberdade para manipular o texto sem escrúpulos”, integrando ainda excertos de “O Mendigo ou o Cão Morto”, de Bertolt Brecht.
A peça é “completamente anacrónica”, explica Cintra. Não tem tempo histórico. E também não tem cenário, até porque, como muitas vezes acontece em Molière, os textos são “suficientemente abstratos para não precisarem de cenário, a não ser os objetos em que as personagens mexem”.
“É quase um road movie com duas personagens: D. João e o criado Gamarelo, uma parelha ao estilo D. Quixote e Sancho Pança, ou Vladimiro e Estragão, do ‘À Espera de Godot’, do Becket. É uma parelha filosófica que anda sem destino. Fogem da sociedade, fogem do casamento do D. João, fogem da polícia porque D. João matou o pai de uma das suas pretendentes, é um drama em estações”, descreve Cintra. “Ou seja, a peça tem um texto, como muitas outras peças têm, mas é teatro vivo, não sei é ‘teatro de texto’. Às vezes, dá-se muita importância a essa classificação de ‘teatro de texto’. O teatro de texto é o que tem texto que vale a pena ler e não palha. Teatro mudo será dança.”
A residência artística em Guimarães foi organizada pelo Centro Cultural Vila Flor e tem tido lugar na “black box” (sala de teatro experimental) da Fábrica Asa – um centro comercial e cultural na freguesia da Polvoreira. Cintra falou com o Observador horas antes de uma apresentação aberta ao público, com excertos da peça.
Nas outras residências artísticas que fez desde abril, o encenador e os atores estiveram em espaços pouco convencionais. Um ginásio de uma Junta de Freguesia, no Montijo. E um hangar no Porto de Setúbal, cedido pela Câmara Municipal. Em Viseu, foram acolhidos no Teatro Viriato.
Depois da estreia em Guimarães no início do próximo ano, “Um D. João Português” voltará, na íntegra, às cidades em que foi criado e entrará em digressão. O problema, nota Cintra, está em que alguns atores terão de aceitar outros trabalhos entretanto, para continuarem em atividade, e isso implica substituições no elenco original. “Só loucos conseguem trabalhar desta maneira, mas ainda há loucos”, comenta o encenador, que aqui trabalha com 18 intérpretes, entre os quais é possível encontrar Bernardo Souto, Diogo Dória, Guilherme Gomes, Rita Durão e Sofia Marques.
“Como não temos espaço próprio, estamos a aproveitar o que administrativamente está decidido como apoio público aos espetáculos: estruturas municipais, financiadas pelas autarquias e não só. É a chamada arte em rede”, diz Cintra, em tom irónico. “Tudo isto são coisas decididas teoricamente e sem qualquer espécie de ligação com a realidade dos artistas que depois vão beneficiar desta organização abstrata. É um dos projetos mais frágeis e um dos mais ambiciosos que faço. Se tiver saúde, ainda farei outras coisas”, afirma Cintra.
No entretanto, teve tempo para encenar uma ópera, “The Rape of Lucretia”, de Benjamin Britten – com apresentações no Teatro Nacional de São Carlos no início deste mês e acolhimento no Teatro Nacional de São João dias 5 e 7 de Janeiro.
“Tenho muitos anos de experiência com a equipa do São Carlos, por isso nem foi um convite institucional, foi um convite de amigos, como, aliás, deveria ser sempre. Nas artes não se pode fazer profissionalização técnica”, defende. “Pensar que as artes se fazem com eficácia e excelência é uma coisa assassina da própria arte. A arte faz-se com imaginação e inovação, coisas que não podemos prever. O que se pede aos artistas é que eles nos surpreendam, que façam coisas que não são académicas, que não são técnicas já aprendidas. Pede-se revelações sobre a realidade a que estamos habituados. A função da arte é fazer avançar o mundo, não é decorar paredes.”