A única pessoa que diz acreditar no futuro da Cornucópia é Marcelo Rebelo de Sousa. O presidente da República esteve na sede da companhia de teatro, este sábado, perto das três da tarde, e num happening inusitado arranjou uma conversa entre ele próprio, o fundador da Cornucópia Luís Miguel Cintra e o ministro da Cultura, que tinha um compromisso em Castelo Branco mas decidiu ficar em Lisboa para assistir ao recital que marcou o fim de um dos mais importantes grupos de teatro em Portugal.

Marcelo chegou no próprio carro, quando já algumas dezenas de pessoas se juntavam à porta da Cornucópia, na zona do Rato, e terá sentido o gelo da receção pública. “Ele sabe que este não é o espaço sociopolítico dele”, comentava um espectador.

Lá dentro, na inesperada conversa tripartida, o presidente quis saber “até que ponto é possível um cenário de eventualmente continuar a atividade, nos termos anteriores ou noutros termos”, com o apoio do ministério da Cultura e da Câmara de Lisboa.

Cintra ouviu e não se convenceu. “Economicamente não acredito que seja possível salvarem a situação”, declarou mais tarde ao Observador.

Castro Mendes falou e não se comprometeu. Disse que “a dotação que a Cornucópia tem do Estado é bastante apreciável”, garantindo que um grupo de trabalho liderado pelo secretário de Estado da Cultura “tem procurado examinar os problemas” e o resultado “será a vontade de uns e as possibilidade de outros”.

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Marcelo saiu antes de o último espetáculo começar, porque tinha outro compromisso na agenda. O ministro ficou até ao fim.

Cintra quer encenar em 2017

O encerramento definitivo da Cornucópia fez manchetes na sexta-feira, mas já era público há vários dias. Um corte nos subsídios do Estado não permite ao grupo continuar uma atividade de 43 anos nos moldes que considera adequados. Fala-se em cerca de 100 mil euros anuais, metade do que a companhia recebia até 2013, mas Luís Miguel Cintra não confirmou se o valor está correto.

O recital deste sábado foi o cair do pano. No fim, já perto das oito da noite, Cintra dizia que “este foi o último espetáculo da empresa Teatro da Cornucópia, mas a Cornucópia não é a empresa”. Irá voltar a encenar, sozinho ou com elementos da equipa.

“Não tenho nenhuma encenação combinada nem local onde fazer, o meu projeto seria, e já o anunciei há muito tempo, um D. João, baseado na tradução portuguesa do teatro de cordel e ao mesmo tempo no D. João de Molière. Tenho muita pena se não chegar a fazer esse espetáculo”, confessou.

“Será em 2017, depois disso não sei se estarei capaz”, adiantou. “Gostava de um de dois extremos: ou tratarem-me como um senhor e darem-me as condições que eu dissesse que precisava, e quem tem dinheiro para estas coisas são os teatros nacionais, ou então com quase amadores, pessoas que não estejam habituadas a fazer teatro, porque acredito que não é preciso ter cursos nem técnicas para ser ator, é preciso gostar de representar, ter capacidade e ser bem orientado.”

Figuras públicas no recital de Apollinaire

A tarde foi bastante longa. Perto das quatro, hora marcada para o recital, centenas de pessoas faziam fila à porta, mais de cem metros de fila. A entrada era gratuita, mas nem toda a gente conseguiu bilhete.

O espetáculo começou às 16h40, com cerca de 200 pessoas sentadas, algumas nas escadas da plateia. As muitas que não tiveram lugar acabaram por desmobilizar, outras regressaram duas horas mais tarde, já no fim do recital.

Abriu Cintra, sentado a uma mesa de madeira, com o poema “Um Fantasma de Nuvens Negras”, de Guillaume Apollinaire. Todos os textos que se seguiram pertenciam ao poeta francês.

Marcaram presença Rui Mendes, João Perry, Miguel Guilherme, Io Apolloni, Leonor Xavier, Catarina Vaz Pinto, Francisco Louçã, Rui Vieira Nery, Inês de Medeiros, Edite Estrela, Augusto M. Seabra, José Tolentino Mendonça e muitas outras pessoas, a maioria de meia-idade. Não faltaram atores mais novos, dos que começaram a carreira nos anos 90, mas foi patente a ausência da chamada comunidade artística de Lisboa.

“Vim aqui por uma dívida profunda de gratidão”, referiu o teólogo e poeta José Tolentino Mendonça. “A Cornucópia desempenhou na minha vida e na de muitos portugueses uma espécie de lugar privilegiado para o conhecimento e para o encontro com textos fundamentais.”

O espetáculo consistiu na colagem de textos de Apollinaire, como “A Cor do Tempo”, e foi representado por Diogo Dória, José Manuel Mendes, Márcia Breia, Rita Blanco, João Grosso, entre muitos outros – o elenco habitual da casa e convidados ligados à sua história.

Uma peça de várias peças, um espetáculo sobre o espetáculo, uma comédia de despedida, seguida de um texto sobre a paz e a guerra.

“Toda a linha do espetáculo era sobre a relação entre a morte, a vida, a paz e a guerra, de uma maneira muito menos simples do que parece, um espetáculo muito interessante, que faz pensar, do qual destaco a beleza do texto”, opinou o ministro da Cultura.

Ao Observador, Cintra explicou que a escolha de Apollinaire se deveu à empatia pela atitude filosófica do autor francês. “Simpatizo com todos os artistas que, em diferentes épocas, sentiram que o mundo estava em crise porque as pessoas não se identificavam com os sistemas políticos que as organizavam, que é o que está a acontecer agora. Apollinaire dizia isto. Não era anarquista, como por vezes se pensa, ele inventava a própria vida.”

Para o ator e encenador, os artistas têm uma missão: “Mudar a cabeça das pessoas, no sentido de uma liberdade maior e de uma responsabilização individual. Atualmente, assistimos ao amor pelos clichés, uma espécie de inconsciência de nos enfiarmos dentro de um clone que já está previsto para nós, e isso destrói a vida das pessoas sem elas darem por isso, anula gente que poderia ser mais feliz e deixar aumentar o lastro da felicidade”, justificou.

“Já sinto muita saudade”

A tarde ficou marcada pelas prolongadas ovações, de pé, no fim do recital e da apresentação que se seguiu do livro-catálogo Teatro da Cornucópia – Espetáculos de 2002 a 2016.

A cenógrafa Cristina Reis, que entrou para a companhia pouco depois do início em 1973, e que até agora dirigia a Cornucópia ao lado de Cintra, também esteve em palco, sempre discreta.

“Já sinto muita saudade, tenho vontade de que tudo renasça, nem que seja uma reestruturação que se baseie no que foi feito”, disse Márcia Breia. “Sinto uma enorme gratidão e uma alegria grande por ter passado aqui tanto tempo. Acho que enquanto houver uma batuta, por ténue que esteja a parecer, a Cornucópia continuará a criar.”

Emocionado, José Wallenstein afirmou que a companhia “é talvez o projeto teatral mais importante depois do 25 de Abril”. “Tudo o que sou do ponto de vista humano e artístico devo-o a esta casa e estas pessoas.”

As palavras finais de Cintra ecoaram na sala: “Ao fim destes anos todos o mais importante é a questão da cumplicidade”, afirmou. “Dos atores, das pessoas de cinema, do pessoal técnico. Cumplicidade que é uma amizade que não tem preço.”