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Era uma vez uma menina de três anos que, todas as noites, pedia à mãe que lhe lesse uma história ao deitar. O ritual era sempre o mesmo: Francisca escolhia um dos contos preferidos, daqueles que já tinha ouvido um milhão de vezes, vestia o pijama e metia-se na cama, debaixo dos lençóis, à espera de ouvir falar de universos fantásticos, onde animais se juntam em pilha para trincar a lua ou lobos maus tentam devorar meninas de capuz vermelho e porquinhos que não são muito dados à construção civil. Era uma vez e continua a sê-lo, todas as noites. O momento entre mãe e filha não tira feriado ou folgas. De tantas vezes que a leitura se repete, quando a mãe falha algum pormenor da história, cabe a Francisca completá-la — a narrativa está para a ponta da sua língua como o fantástico está para a sua imaginação.
Francisca ainda não tem muito interesse por princesas que precisam de ser beijadas para voltar à vida, continua a preferir o lobo mau de dentes afiados e de estômago apertado de tanta fome. Durante as sessões de leitura não mostra qualquer receio da figura peluda. Mas volta e meia, quando a lua rouba lugar ao sol, a menina retrai-se um pouco e pergunta se o lobo está a caminho. “É uma associação que ela faz, mas já há histórias em que o lobo é amigo e brincalhão. Ela já sabe que nem sempre o lobo é o mau da fita”, diz Susana Represas, a mãe.
E não viveram felizes para sempre
Há muito que os contos de fadas fazem parte do imaginário infantil — seja na forma de bruxas más e sereias que querem aprender a andar ou gatas-borralheiras que querem fugir ao inferno da vida fraternal (e não só). São histórias que povoam a literatura e que passam de geração em geração, por norma coladas a valores morais e/ou éticos. Apesar de comummente associadas às crianças, os contos de fadas (ou contos maravilhosos, a designação mais ampla) nem sempre tiveram destinatários infantis ou finais felizes.
Chegas mesmo a tempo — continuou a bruxa. — (…) A tua cauda separar-se-á do corpo e contrair-se-á naquilo que os homens denominam umas pernas encantadoras, mas isso produzir-te-á dores horríveis, como se te trespassasse uma espada aguçada. Todos os que te contemplarem dirão que jamais viram um ser humano tão belo como tu. Conservarás o teu andar ondulante que nenhuma bailarina saberá igualar, mas por cada passo que deres será como se pisasses uma faca afiada que te fizesse sangrar.”
“A Pequena Sereia”, em Contos de Hans Christian Andersen (Alêtheia Editores)
Que o diga a psicóloga clínica Vera Lisa Barroso, que ainda hoje se recorda de quando em pequena leu a história original de “A Pequena Sereia”, escrita pelo dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), cujos contos foram reeditados este ano pela Alêtheia. À data, o que mais impacto lhe causou foi a descrição da transformação da sereia em mulher, as dores lancinantes de uma cauda transformada em duas pernas — e para que conste, no conto original, a sereia já humana não fica com o príncipe.
Em criança isso fez-lhe confusão, em adulta já nem tanto. A psicóloga é das que defende que os finais nem sempre têm de ser felizes: “[Os finais infelizes] são mais proveitosos para as crianças, porque aí elas conseguem identificar-se com a realidade. Não é à toa que os miúdos ficam altamente frustrados quando perdem um jogo, não estão preparados para aceitar uma derrota. É importante não dar esta falsa ideia de que o mundo é completamente cor de rosa.” Porque as princesas nem sempre são bonitas e as bruxas nem sempre são más.
Quando situações menos boas acontecem na vida real, tanto crianças como adultos ficam atrapalhados, garante a também membro da equipa infanto-juvenil da Oficina de Psicologia, que fala na tendência recorrente de os pais protegerem os filhos. “É importante que, em doses pequenas, as crianças vão tendo contacto com estes conteúdos para irem ensaiando emoções”, continua.
A ideia não é completamente inovadora e é defendida no livro Pais à Maneira Dinamarquesa, escrito pela cronista norte-americana Jessica Joelle Alexander e pela psicoterapeuta e terapeuta familiar dinamarquesa Iben Dissing Sandahl. O livro pretende desvendar o porquê de os dinamarqueses serem sucessivamente considerados o povo mais feliz do mundo e, segundo as autoras, o mistério está na forma como estes homens e mulheres são criados, o que passa também por filmes com finais sombrios e tristes. Baseando-se num estudo da Universidade de Ohio, as autoras escrevem que “ao contrário da crença popular, ver filmes trágicos ou tristes torna, na verdade, as pessoas mais felizes, chamando a sua atenção para alguns aspetos mais positivos das suas próprias vidas”.
Os finais felizes dos contos de fadas (ou maravilhosos) são sintoma de uma evolução feita ao ritmo das características da nossa sociedade, daí que o lobo seja cada vez mais amigo dos porquinhos que um dia quis engolir de uma só vez. Para aí chegar, importa explicar — com a ajuda de Ana Margarida Ramos, doutorada em Literatura e docente na Universidade de Aveiro — que os contos de fadas pertencem à literatura oral, não têm dono e estão em constante evolução. Com o tempo passaram a ser escritos, pelo que existem várias versões de uma mesma história. Seja disso exemplo a do Capuchinho Vermelho que, nas palavras do escritor Charles Perrault (1628-1703), acaba bem mal: tanto a avó como a menina são comidas pelo lobo, sendo que a moral é sobre sexo. “É uma chamada de atenção às mulheres para não caírem nas falinhas mansas de lobos bem falantes, isto em contexto de corte”, diz a académica.
Maria Teresa Cortez, também ela da Universidade de Aveiro, refere uma segunda perspetiva que contraria a ideia de que os contos passaram da via oral para a escrita. Dizem os estudiosos da literatura, assegura a docente, que os tais contos maravilhosos começaram por ser contos de autor que, com o tempo, ganharam tanta popularidade que singraram na tradição oral. “Os românticos do século XIX pensavam que estes eram contos do povo, os quais foram naturalmente alterados pela via oral.” É tal e qual como se costuma dizer: quem conta um conto, acrescenta um ponto.
De que são feitos os contos de fadas?
“Os contos de fadas não dizem às crianças que os dragões existem. As crianças já sabem que os dragões existem. Os contos de fadas dizem às crianças que os dragões podem ser mortos.” G. K. Chesterton
Por mais estranho que possa parecer, os contos de fadas — que contêm elementos da ordem do inexplicável — nem sempre tiveram um destinatário infantil explícito, sendo que muitos deles partiram de histórias violentas que, com o tempo, foram sendo adaptadas para chegar aos olhos, mãos e imaginário dos mais pequenos.
“Estava quase para lhe dar um tiro de espingarda quando lhe ocorreu que o lobo podia ter comido a avó e ela talvez ainda pudesse ser salva. Em vez de disparar, pegou numa tesoura e começou a abrir a barriga do lobo adormecido. Mal tinha dado um par de golpes, eis que o Capuchinho saltou de lá para fora, dizendo: ‘Ufa, que susto que apanhei! Estava tão escuro na barriga do lobo!”
“O Capuchinho Vermelho”, em Contos Completos dos Irmãos Grimm (Temas e Debates)
A primeira edição de Os Contos da Infância e do Lar de Jacob e Wilhelm Grimm (1812-1815), por exemplo, consistiu na recolha académica de contos que corriam na tradição oral, tal como explica Maria Teresa Cortez, com uma tese de doutoramento onde explora a receção dos contos dos irmãos Grimm em Portugal. “Quando fizeram a recolha dos contos, fizeram-no no quadro do Romantismo e o objetivo inicial era fixá-los por escrito. Os Grimm não eram escritores, tinham formação em Direito. Já numa segunda edição, no prefácio está a mensagem de que o livro pode ser lido com proveito pelas crianças.”
Ao longo da vida dos irmãos saíram sete edições do livro, sendo que em cada uma delas foram acrescentados contos e trabalhados textos, sempre considerando os leitores mais novos. A última edição da obra dos Grimm contou com 200 contos e 10 lendas religiosas para crianças. Entre as histórias mais populares estão a do Capuchinho Vermelho, a da Branca de Neve e a da Rapunzel.
“Para mim, os contos de fadas são narrativas passadas num lugar e tempo indefinidos, mas que de alguma forma remetem para uma época medieval ou mais rural, em que basicamente é tudo possível”, diz o escritor David Machado, que em 2005 ganhou o Prémio Branquinho da Fonseca — da Fundação Calouste Gulbenkian/Semanário Expresso — com o livro A Noite dos Animais Inventados. Machado tem ainda outros títulos dedicados aos leitores de palmo e meio: Os Quatro Comandantes da Cama Voadora, Um Homem Verde Num Buraco Muito Fundo e O Tubarão na Banheira, a título de exemplo.
David Machado não é indiferente a este segmento da literatura e, na condição de pai e de autor de livros para crianças, diz que os mais novos sentem-se atraídos pelo universo da fantasia. “Costumamos dizer que eles são mais inocentes, mas eles é que têm uma capacidade para absorver esse mundo que nós, adultos, não temos. Não acho que isso seja um defeito que precise de ser corrigido. Em adultos perdemos isso: ficamos mais conscientes e cínicos em relação ao mundo.”
Histórias simples de contar e com uma estrutura bastante definida. Os contos de fadas são assim, diz Machado. Em tempos, essa foi precisamente uma das críticas apontadas aos contos: estávamos na década de 1970 quando, em França, surgiu um debate sobre a utilidade da leitura destas histórias aos mais novos. “Alguns críticos acusaram os contos de serem estereotipados e de representarem uma sociedade patriarcal”, explica a professora académica Ana Margarida Ramos. Eis, então, que surge Bruno Bettelheim, autor do livro Psicanálise dos Contos de Fadas, que veio defender os contos ao argumentar que estes ajudavam as crianças a lidar com problemas existenciais na infância.
“Ele argumenta que as narrativas estereotipadas ajudam as crianças a organizar o pensamento”, continua a docente, afirmando que nos contos existe sempre uma noção de esperança e um herói frágil que vai trilhar um percurso de afirmação, tal como aconteceu com Portugal no último campeonato europeu de futebol — há algum tempo que não somos o patinho feio da competição, mas desta vez fomos uma espécie de Cinderela que soube rematar à baliza a tempo e com jeito. “O percurso de superação está diretamente relacionado com o sentido de esperança que os mais frágeis vão superar. As crianças identificam-se com esse percurso: não se chega ao final de qualquer maneira, mesmo quando há magia à mistura. Há etapas e provas no caminho, e heróis que se mantém fiéis aos seus valores e que resistem à tentação.” Heróis como Éder.
Contos para que vos quero?
As mais-valias associadas aos contos não se ficam apenas pelos valores que transmitem ou pela ética impressa nas suas palavras. Mas sem dúvida que não existe um conto sem que não haja uma moral ou uma lição embebida na narrativa: o Capuchinho Vermelho deveria ter dado ouvidos à mãe e, assim, nunca falaria com estranhos, e os três porquinhos deviam ter unido esforços para que o diafragma do lobo mau não arruinasse as suas construções.
As personagens e a forma como estas interagem entre si são alguns dos elementos que compõem a riqueza destas histórias e, muito embora haja mais a retirar do que a moral em si, importa recordar que as crianças são autênticas esponjas. “Há até a questão da imitação: tenho vários miúdos que acompanho no consultório que, quando sai um filme novo da Disney, ficam inspirados e imitam ou brincam desta ou daquela personagem”, diz a psicóloga Vera Lisa Barroso.
Moralidade à parte, há toda uma riqueza associada a estes contos, até porque ajudam as crianças a criar um reportório de personagens e de símbolos que são fundamentais para a presente cultura. “Uma criança que não conhecer este universo não vai ser capaz de reconhecer na nossa sociedade uma série de referências e de ilusões. É quase impossível falar-se do lobo sem trazer à memória a imagem do lobo mau”, aufere Ana Margarida Ramos. A docente dá ainda um exemplo de fácil compreensão: só é possível perceber os filmes do ogre Shrek se conhecermos o universo dos contos maravilhosos.
Aliás, vale a pena acrescentar que parodiar o mundo dos contos de fadas — como acontece na narrativa do anti-herói ogre verde — é uma marca do pós-modernismo, é o questionar e o pôr em causa aquilo que já existe. A isso acrescenta-se o facto de os contos permitirem que os mais novos construam mais facilmente um esquema narrativo. Mas independentemente da qualidade dos livros e das histórias, o que parece importar mesmo são os momentos de leitura criados entre pais e filhos, entre a pequena Francisca e a mãe Susana, para voltar ao exemplo do início. Estes são vistos como momentos de afeto e de atenção, que podem ser cruciais na formação de leitores.
Façamos a pergunta para dar a resposta: ainda faz sentido ler contos de fadas às crianças? Sim, não só porque os mais novos estão cada vez mais virados para as tecnologias e as palavras escritas potenciam a criatividade, mas também porque proporcionam momentos de leitura em família e ajudam a valorizar o livro em si. Isto para além de os contos atravessarem gerações e apresentarem um enorme reportório simbólico. E sim, também pelo esquema narrativo e pelo impacto ao nível do estímulo da linguagem. Com ou sem finais felizes. Com cauda ou com pernas.