Vivemos tempos de uma transição cultural profunda, mas parece que não fazemos caso ou não sabemos bem como lidar com esta realidade. A velocidade a que se processa esta transição, e que se derrama sobre o nosso quotidiano como uma vertigem, dificulta ainda mais a legibilidade das mudanças em curso e não deixa antever quais os melhores investimentos a realizar para o futuro. Algumas destas mudanças têm um impacto muito direto sobre as crianças e os jovens e transportam para o quotidiano escolar realidades novas sobre as quais é preciso atentar cuidadosamente.

Sublinho aqui apenas estas cinco e brevemente: (i) o acesso incontrolado e imediato a informações, processo pelo qual não só a “imediatez substitui qualquer mediação” – mesmo a escolar – como a torrente de informação se transforma num “empilhamento arbitrário de casos concretos”, difícil de discernir para qualquer cidadão e ainda mais para uma criança ou um jovem; (ii) o consumo contínuo de imagens em gadgets electrónicos, que desenvolve sobretudo competências de comunicação icónico-simbólicas, ligadas ao repentino e ao imediato, ao superficial e fragmentado, ao rapidamente visto e quase nunca meditado; (iii) as cidades e o trabalho revelam dificuldades crescentes em se organizarem para o bem-estar dos seus cidadãos, para o convívio intercultural entre os vizinhos, de modo a que as famílias possam usufruir de tempo de qualidade para estarem serenamente uns com os outros, pais e filhos; (iv) o culto de um consumismo permanente, inculcado sobre o filho único, consumismo este que rapidamente conduz ao vazio e à deceção (Lipovetsky), gerando perturbações várias no crescimento das crianças e dos jovens; (v) uma escolarização que se tornou violentamente obrigatória para todos os cidadãos até aos 18 anos, passando a ocupar a quase totalidade do tempo social das crianças e dos jovens e que tende a seguir o “ar do tempo”, entrando na mesma vertigem, sem tempo para a escuta mútua, para a construção de narrativas ligadas à identidade e expressão individuais, contribuindo para afastar ainda mais as pessoas de si mesmas e da sua vocação.

Diante de tantas mudanças, o modelo escolar tradicional normalizador, burocrático e centralista tem dois caminhos: o primeiro é mudar e o segundo é mudar. Por isso, impõe-se uma questão: como estão as escolas e os profissionais do ensino preparados para enfrentar essas mutações, para as integrar na sua atividade profissional e para serem profissionais com uma presença educativa significativa nas aprendizagens e no desenvolvimento humano das crianças e dos jovens de hoje? Entrando por outro lado: porque é que se fala tanto de indisciplina nas nossas escolas? A “indisciplina” não será, desde logo, uma manifestação de um mal maior? E o modelo escolar normalizador nada tem que ver com isso?

Vou tentar equacionar as questões. No ano passado, fizemos um estudo sobre as motivações e preocupações dos professores e uma conclusão parece clara: perto de 35% dos docentes portugueses dizem-se exaustos (19%), desiludidos (13%), baralhados ou desesperados. Mais: 33% dizem que gostariam de mudar de profissão e 31% dizem-se desmotivados para ensinar. Isto não é grave, é só muito grave. Mas, estas e outras conclusões de estudos idênticos entraram na vertigem informativa que devora tudo o que se passa e, uma vez mais, já esquecemos o problema de base. Mas ele aí está, agravado ainda pelo peso excessivo do envelhecimento dos educadores e professores (os jovens são hoje uma exceção) e por uma erosão profissional dramática, espevitada por anos sucessivos de mudanças de rumo político na educação, em que um governo manda fazer de um certo modo e logo o que lhe sucede manda fazer o contrário (como no caso dos exames, para dar só um exemplo) e ninguém avalia cuidadosamente o que se faz, nem sabe escutar em silêncio escolas, alunos, professores e pais.

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Ou seja, no exato momento em que as mutações socioculturais são mais vastas e profundas e se tornam mais exigentes para o exercício profissional dos educadores, é quando estes estão mais exauridos, desgastados e desmotivados. Este efeito tesoura é de uma gravidade transbordante.

Acresce que nunca, depois do 25 de abril, os educadores e os professores foram objeto de uma reflexão e ação política global de um qualquer governo (desde o acesso à formação inicial, à reformulação do conteúdo desta, ao acesso à profissão, à formação em exercício, à progressão na carreira, de modo integrado e coerente). Ninguém quer abrir esta caixa de Pandora e os sindicatos de professores, que ocuparam quase todo o espaço da associação dos professores, nunca foram capazes de colocar a qualidade do exercício profissional docente na agenda das prioridades da sua ação. Os professores portugueses precisam de aprender a acumular conhecimento profissional (e têm muito, mas disperso, individualizado e desconexo) e têm de ser capazes de o sistematizar, para melhor ensinar e fazer aprender. Mas não o fazem.

Ora, isto tem um preço. Quem não semeia, não colhe. Debato-me constantemente, no trabalho com as escolas e os docentes, com uma dificuldade crónica de distanciamento do quotidiano, de recurso a bases de dados e de experiências, de reflexão crítica orientada e de capacidade de programação de uma ação profissional focada, continuada, avaliada e melhorada, de modo sustentado, anos a fio.

O quadro político geral, como referi acima, não ajuda. A ação política nacional continua a ser errática, pouco amadurecida e muito pouco sustentada na investigação, o modelo “top-down” é ainda dominante e o poder da 5 de outubro continua a ser sobretudo uma fonte autocrática e especialmente iluminada acerca de tudo o que há que fazer em cada escola, em vez de ser um poder humilde e capaz de construir um caminho com as escolas e com os educadores e professores e com os alunos (estão a ser dados agora alguns pequenos passos neste sentido).

Este modelo de ação política gera dois problemas, entre outros: não é assegurada a sustentabilidade da inovação ou das melhorias e desresponsabilizam-se, anos a fio, escolas e professores que, além do mais, constatam que os seus esforços desaguam em nada (ou muito pouco, feito com um esforço quase sobrehumano).

Então, temos de concluir o óbvio: estamos bloqueados. Mas estaremos mesmo? Não sei. Mas uma coisa julgo saber e é essa que aqui partilho. É preciso investir, muito e durante muitos anos seguidos, na qualidade do exercício profissional de educadores e professores. E estes devem ser os primeiros interessados. Todavia, isolados e desapoiados, como até aqui, continuarão a ver as suas iniciativas e os seus esforços de melhoria da ação educativa ir pelo cano abaixo, ano após ano, sem capacidade de reagirem.

Entendo que os educadores, os professores, os técnicos que os apoiam na ação educativa e os diretores das escolas precisam de se unir, de criar redes de ajuda mútua, precisam de cooperar de modo estruturado e sustentado no tempo. E isso não é fácil. Ninguém, nenhum Ministério nem Sindicato fará por eles o que estes profissionais têm de fazer e com urgência, por iniciativa própria. Dou comigo a recordar continuamente aos professores que nós, os profissionais de educação e ensino, também somos poder político! A resposta mais comum é: estamos cansados de ser enganados e desvalorizados.

A capacitação para isto mesmo é uma prioridade, bem como é inadiável que estas redes de cooperação sejam instrumentos de reflexão profissional conjunta, de distanciamento crítico e de avaliação, de ação e de apoio à melhoria contínua do exercício profissional, das iniciativas e dos projetos. É preciso verificar o que é que resulta (e não resulta) e em que circunstâncias, conhecer e estabelecer os requisitos de sucesso nas aprendizagens e no desenvolvimento dos alunos, codificar este conhecimento e fazê-lo evoluir sempre, com a ação e com a investigação. E estes esforços têm de ser sustentáveis no tempo, de modo a contrariar o “stop and go” errático das políticas nacionais. E isto também não é fácil, com tanta erosão e desmotivação existentes.

O apoio da administração educacional, das organizações profissionais de educadores e professores e das instituições de ensino superior, desde que apostados no mesmo tipo de ação humilde e cooperativa, é imprescindível e decisivo. E isto também não é fácil. E porque não é fácil, talvez valesse a pena dedicar os próximos vinte anos a investir neste caminho, tornando-o prioritário e colocando-o, por isso, sempre acima de qualquer outro.

Quem nos disse que isto de ser professor, hoje, era fácil, enganou-nos. Quem não investe tudo na preparação dos melhores profissionais do país para a educação e o ensino das novas gerações, continua a enganar-se. Quem nos diz que este caminho da entreajuda e da cooperação é impossível, não percebe nada de educação. Quem já não acredita, está exausto e desmotivado, seria bom que ficasse quieto, e quem acredita na sua profissão tem mesmo de tirar as mãos dos bolsos e construir um novo edifício profissional e organizacional de base cooperativa e descentrada, sem esperar por autorização.

Somos nós, os professores, que temos de desfazer os nós em que nos enredaram e nos quais nos temos deixado estar enleados. Ninguém o virá fazer por nós, nem governos nem quaisquer outros salvadores (que nos disseram que existiam, mas não existem, pois estamos mesmo sós).

Professor catedrático na Universidade Católica Portuguesa e Conselheiro Nacional de Educação.
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.