Recebi com grande alegria a notícia da eleição de António Guterres para Secretário-Geral da ONU e aguardo ansiosamente o dia em que vai iniciar funções, para poder confirmar que a sua primeira medida será o envio de uma missão de paz a minha casa. Preciso de alguém que fale a linguagem dos meus filhos, para lhes fazer compreender o significado da palavra paz e nada melhor do que um Português para o fazer, apesar de começar a pensar que a língua portuguesa não é a que melhor entendem.

A situação lá em casa é a seguinte: a minha filha mais nova vive como uma refugiada na sua própria casa, sempre à procura de um local seguro para assentar arraiais, enquanto o meu filho mais velho ainda sonha com os tempos do império, em que era tudo dele e não consegue perceber os ventos da história e muito menos os desejos de autodeterminação da irmã.

Os pais destas duas criancinhas amorosas já tentaram de tudo. Primeiro, promovemos a assinatura de um acordo de paz, que foi logo rasgado pela irmã mais nova, o que motivou uma escalada de violência do “mais velho”, que aproveitou uma das folhas rasgadas para desenhar um dinossauro, assim representando pictoricamente o quão antiquado era aquele acordo, meros 5 minutos depois da sua assinatura.

Depois, propusemos a criação de um cordão humano (com a mãe a fazer de humano e o pai a fazer de cordão) a dividir os dois anjinhos, mas os brinquedos são como o dinheiro e não conhecem fronteiras, sendo necessário desfazer o cordão humano para ir buscar uma boneca perdida no território inimigo ou recuperar um carrinho escondido para lá do paralelo 38. Motivado pela recente eleição presidencial nos EUA, até já dei por mim a prometer a construção de um muro no quarto deles, ameaçando que os obrigaria a pagar pelo mesmo. Nada.

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Com muro ou sem muro, o quarto dos infantes é uma imagem de Berlim antes de 1989, mas em tons de azul suave e sem um checkpoint charlie, onde se proceda à troca de brinquedos aprisionados do lado errado do quarto. Há mesmo turistas a quererem ir lá tirar selfies, num registo saudosista da história, já que bastaria desligar o aquecimento central lá de casa para se poder regressar a um cenário de guerra fria.

Durante a semana, enquanto o mais velho está no Colégio, a mais nova distribui as suas bonecas-milícias (todas de cabeça rapada) pelo apartamento. Nessa tarefa de colonização vai destruindo qualquer sinal da civilização deixada pelo irmão, quer seja a construção de um puzzle feito na noite anterior, quer seja uma sofisticada construção de lego, protegida pela UNESCO. Enquanto ele está fora, ela encarna a História e faz de Luís XIV (aliás a minha mulher ainda a veste como se fosse o Luís XIV) proclamando, com a chucha na boca: L’Etat c’est moi.

Mas depois chegam as cinco da tarde, hora a que o mais velho regressa a casa e o toque da campainha soa como uma sirene a mandar todos para os abrigos. Na rádio toca a música do Pedro Abrunhosa: Onde estiveres, eu estou / onde tu fores, eu vou / Para onde olhares / eu corro e ninguém me tira da cabeça que aquela letra não foi escrita a pensar nos meus “piquenos”! Quem pensa que é preciso ter uma casa grande para que os filhos tenham espaço para crescerem, desengane-se. Para os meus filhos é igual viverem num T0 ou num T8. Onde estiver um, está o outro. E esse é que é o problema.

Caro Eng. António Guterres: Precisamos urgentemente dos capacetes azuis. Se só tiver quatro disponíveis, aceitamos, porque sempre os colocamos nas nossas cabeças para nos protegerem, já que uma boneca Titucha a voar pode abrir um sobrolho e um carrinho hotwheels descontrolado é capaz de pôr uma canela em ferida.

Mas o que precisamos mesmo não é apenas de contenção de danos. O que precisamos é de um batalhão de capacetes azuis dispostos a organizar uma peace keeping operation ou, melhor, uma peace making operation. Bem sei que não podemos olhar para o mundo através da nossa casa, mas já que se tem de começar a paz por qualquer lado, então talvez se possa começar por aqui.

Agora que a tropa portuguesa deixou o Kosovo, será que não podia dizer-lhes para passarem lá por casa à tarde, quando o meu mais velho regressa do colégio e, depois, ficarem para jantar e até à hora (sempre negociada como se se estivéssemos numa reunião do conselho de segurança) de irem para a cama.

É que depois disso é muito fácil. Eles a dormir são uns anjinhos, com uns pijamas azulinhos que comprei no merchandising da minha última visita à sede da ONU e que dizem: trata todos como se fossem teus irmãos.

Advogado