Todos os dias, pelas 20h, o Observador difunde a newsletter “Macroscópio”, elaborada por José Manuel Fernandes. Eis o Macroscópio de 20 de Junho, dedicado em exclusivo à série “Guerra de Tronos”.
Reprodução da newsletter Macroscópio desta sexta-feira, 20 de Junho:
Quem segue estas minhas missivas sabe que, às sextas-feiras, nunca me esqueço de aqui referir a série Game of Thrones (A Guerra dos Tronos, em português). Pois é, mas acabou esta semana. Terminou a quarta série e só haverá mais lá para Março de 2015. A dificuldade vai ser aguentar até lá – digo eu e dizem muitos dos críticos que li esta semana.
Muitos talvez se interroguem sobre o que me fascina nesta série, com toda a sua violência, com todos os seus excessos, com o seu lado fantástico e irreal. A minha resposta é simples: porque há nela muito mais realismo do que se imagina, porque ela é muito verdadeira sobre o que é a natureza humana, sobre os seus excessos, sobre esse eterno jogo, de todas as gerações, de todas as eras, que é a luta pelo poder.
Em nome do poder, vale tudo. Era assim, continuará a ser assim?
A história não é apenas cativante pela sua imprevisibilidade – é cativante por nos mostrar, com uma crueza rara, a complexidade da alma humana. Em Game of Thrones há vilões absolutos, mas não há heróis sem mácula. Não há alianças permanentes – a não ser as determinadas pelo sangue, isto é, por laços familiares –, antes a flutuação própria de quem olha antes do mais ao interesse próprio.
Mas não me cabe a mim elaborar muito nestas newsletters, pelo que vou antes partilhar alguns artigos interessantes sobre esta série e os livros que lhe deram origem.
Começo pela componente histórica. Apesar de o romance de George R.R. Martin que é a base desta série misturar evocações históricas com alguma fantasia, e ter inventado toda uma geografia inexistente, a imprensa britânica não tem dúvidas: Não só a fantasia de R.R. Martin não anda longe da realidade, como se escreveu no Guardian – “for all its extravagant and far-fetched trappings, A Song of Ice and Fire has much to tell us about our day-to-day world” –, como até poderá dar uma ideia mais verdadeira do como era a vida real nos tempos medievais, como se defende na Spectator – “The popular TV drama gives a vivid idea of how people might have behaved in the Middle Ages – which is brutally”.
George R.R. Martin, autor de A Song of Ice and Fire
Como se escreveu na The Atlantic por alturas da estreia da primeira série (terminou esta semana a quarta temporada e esperam-se mais duas), há uma preocupação em contar o que passava nesses tempos antigos sem o embelezamento das canções dos trovadores:
“It wants to tell you precisely what is not in the songs troubadours perform: the callous ambitions of nobles, the suffering of their serfs, the paralyzing social conventions of life for the mostly lowly blacksmith or highborn lady. While the producers of Game of Thrones might have been tempted to portray the epic battles of Robert’s Rebellion in 300-style flashbacks, this history is instead rendered verbally, much as it is in the book, through the war stories of old men who are no longer the heroes they once were.”
Algumas das cenas mais brutais – como o “casamento vermelho”, no final da terceira temporada, o terrível combate entre os dois campeões, a que pudemos assistir há apenas duas semanas – partem mesmo de episódios reais, descritos pelos historiadores e aos quais George R.R. Martin foi buscar inspiração. Como nos conta o Huffington Post, é uma mistura do que se passou no “jantar negro”, um episódio sangrento da história da Escócia, e do massacre de Glencoe, um outro evento trágico da guerra de clãs nas terras altas e frias do norte da Grã-Bretanha.
“Red weding”, uma das sequências mais marcantes da terceira série
Os fãs desta série dividem-se em dois grupos: os que já leram e os que prometem ir ler os romances de George R.R. Martin em que ela se baseia, As Crónicas de Gelo e Fogo. Esta saga, cujo primeiro volume saiu em 2005, tem sido aclamada pela crítica e não falta quem considere que estamos perante o “Tolkien americano”. A alcunha foi-lhe dada inicialmente por Lev Grossman, um escritor e prestigiado crítico, que escreveria mais recentemente na Time que o mais recente volume a ver a luz do dia, A Dance with Dragons (2011) é realmente uma obra-prima digna do criador de O Senhor dos Anéis:
“The complexity of Martin’s design ensures that we experience the struggle for Westeros from all sides at once. It’s as if he’s trying to show us that every fight is both triumph and tragedy, depending on where you see it from, and everybody is both hero and villain at the same time. Or maybe not even that. “There are no heroes, only whores,” says Theon. On the strength of A Dance with Dragons, it’s hard to prove him wrong.”
Não há heróis perfeitos
Claro está que, como todas as grandes obras, esta levanta poderosas questões morais. Nas quais vale a pena pensar. Esse é precisamente o ponto desta crónica de um site católico, o Catholic Universe, onde se critica o fascínio que a série suscita. Por exemplo:
“It turns out that the opening show of this season’s Game of Thrones featured prostitution, nudity, attempted rape and a disembowelment. Is this really something that we should ignore or accept as being ‘entertainment’? For a culture that likes to pride itself on its sophistication, this doesn’t seem so far removed from what went on in the amphitheatres of Rome.”
Não julgo que este ponto de vista seja correto, mas também não duvido que Game of Thrones não é um espectáculo para crianças, porventura nem para adolescentes. Mas isso não deixa de fazer desta série, e dos livros em que inspirou, uma saga memorável. Se não conhece, comece pelo princípio: procure o DVD os 10 episódios da primeira temporada. É uma sugestão para vários fins-de-semana. Se conhece, passe os olhos por alguns destes artigos que acabo de sugerir. Por mim, fico à espera da quinta temporada. Ansiosamente.
Bom fim-de-semana.
José Manuel Fernandes