O aeroporto internacional da Madeira foi inaugurado em 1964 e até tem uma pista de 1.600 metros. Mas, na repartição das finanças local, não tem qualquer registo. Não existe. Mas não se admire. O património do Estado é imenso e nem ele próprio o conhece bem. Dada a isenção de pagamento de impostos, há uma parte dos imóveis do Estado que não está registada nas Finanças (registo matricial), nem nas conservatórias (registo predial). Um problema reconhecido desde 1929 e que não é só português. Em França, há um problema semelhante.
O caso do aeroporto da Madeira é, segundo o advogado Miguel dos Santos Pereira, um “aeroporto fantasma”. O advogado diz que os aeroportos de Lisboa e Porto têm um registo matricial. E essa devia ser uma solicitação feita pela própria ANAM, quando ficou com a concessão do aeroporto em setembro de 2013. Ao Observador, o porta-voz da ANA, Rui Oliveira, disse que “o aeroporto da Madeira insere-se no domínio público e não no privado, como tal não carece de registo matricial”.
Uma visão não partilhada pelo advogado Miguel dos Santos Pereira. ” Por via da alienação das participações da ANAM, passou a ter relevância a liquidação do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) e este incide sobre o valor patrimonial tributário dos prédios (rústicos e urbanos) situados no território português, constituindo uma receita própria dos municípios onde os mesmos se localizam”, defende. Daí a necessidade de registar o aeroporto. O advogado reconhece, porém, muitos outros casos de imóveis públicos que não têm qualquer registo.
“No Terreiro do Paço, excepto dois edifícios onde está o Ministério da Administração Interna, nada tem registo predial ou inscrição matricial”, disse ao Observador Guilherme Waldemar de Oliveira Martins. O professor de Finanças Públicas, e filho do presidente do Tribunal de Contas, não se admira que o aeroporto da Madeira também não exista. É que, explica, o problema arrasta-se desde 1929, quando foi criada a então Direção Geral de Edifícios e de Monumentos Nacionais, depois extinta pelo Programa de Reesturação da Administração Central do Estado (PRACE).
Com a extinção daquele organismo e a reforma do Estado “esse cadastro desapareceu parcialmente”. A isto juntou-se, ainda nos anos 90, a criação de “veículos financeiros, de forma a contornar o défice, como a Gestamo, o Parque Tejo ou o Parque Escolar. “São vistos como entidades privadas, mas são institutos públicos”. Como muitas estão fora do Orçamento de Estado, “não estão obrigadas a fornecer esse cadastro”, explica ao Observador.
Por outro lado, sublinha, “havia edifícios que ficavam fora do levantamento de qualquer organismo, como os edifícios sem fins administrativos ou as habitações para magistrados. E a Direção Geral do Tesouro e das Finanças (DGTF) veio agregar tudo isto em 2007″.
“É uma zona absolutamente cinzenta e, mesmo em França, está a ser discutida há já 25 anos. Porque o principal ativo do Estado são os impostos e não o património”, diz Guilherme Waldemar Oliveira Martins.
Plano delineado em 2006 ajudou, mas não resolveu
Uma resolução do Conselho de Ministros de 2006 veio alertar para o facto de o défice e da dívida pública passarem também pela rentabilização do património. E estabeleceu que o então recenseamento, levado a cabo pelo Instituto Nacional de Estatística parar apurar quantos imóveis o Estado tinha, fosse comunicado à Direção Geral do Património. Em agosto do ano seguinte, seria publicada uma lei, ainda hoje em vigor, que veio estabelecer um programa de inventariação de imóveis públicos, impondo regras para a regularização matricial e para o registo predial.
Em 2008 era aprovado um programa de gestão do património do Estado para ser desenvolvido em três anos (entre 2009 e 2012) em sete eixos de atuação, entre eles a inventariação, a regularização jurídica (registo predial e matricial), o regime de utilização, o estado do edifício. Falava-se em 10 mil imóveis. A DGTF criou uma ferramenta informática onde todos os organismos públicos deviam inserir os dados relativos a todo o seu património. Mas uma auditoria do Tribunal de Contas, concluída em 2011, viria a concluir que alguns organismos do Estado nada tinham inserido no sistema. Era o caso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, da Defesa e da Administração Interna. Por outro lado, alguns dos registos feitos estavam incompletos. Faltavam registos prediais e matriciais.
O último relatório anual da DGTF, relativo ao último ano do programa, em 2012, revelava uma melhoria da ferramenta (Sistema de Informação dos Imóveis do Estado). O ano fechou com 19.473 imóveis inseridos. Mas, quanto ao registo dos imóveis na conservatória ou nas finanças, constatou-se que o processo “continuava moroso e complexo” à semelhança dos relatórios anteriores. O Observador tentou apurar junto do Ministério das Finanças se havia já um relatório mais recente, mas até agora não recebeu resposta.
Por seu turno, o Ministério da Justiça (MJ) tentou intervir e ajudar no processo. Em dezembro de 2013 acabou mesmo por assinar um protocolo com o Ministério das Finanças, por via do Instituto dos Registos e Notariado (IRN) e da DGT, de forma a receber registos de imóveis públicos de forma mais rápida.
“Conscientes de que o conhecimento por parte do Estado do seu património imobiliário é uma necessidade de prioritária satisfação porque capital para a delineação e execução das políticas e cumprimento dos objetivos de eficiência, eficácia, racionalidade e responsabilidade na administração, gestão, preservação e rentabilização desse património”, lê-se no protocolo.
De acordo com dados fornecidos pelo MJ há já resultados. Em seis meses foram registados 125 imóveis, nove correspondentes a atualizações de registo e 95 a registos de aquisição. Os outros tratam de anexação de prédios, por exemplo. Os dados não indicam registos de imóveis que já estavam no domínio público e cujo registo é desconhecido.