Tal como na célebre metáfora do elefante e das fatias, podemos encontrar na proposta de Orçamento do Estado para 2015 seis grandes linhas de força:

  • A consolidação da enorme despesa pública;
  • A consequente consolidação do enorme aumento de impostos;
  • A enorme expectativa sobre as reformas tributárias em curso;
  • Apesar de tudo, a enorme estabilidade fiscal, sob o nome de código “87, nº 1”;
  • O relevo maior, já quase enorme, da fiscalidade menor e da parafiscalidade;
  • Os enormes riscos de que algo corra mal no cenário macro económico e de um renovado enorme aumento de impostos (indiretos).

Vejamos individualmente estes pontos de análise do Orçamento.

A consolidação da enorme despesa pública

A principal dificuldade da economia nacional reside na estrita necessidade de equilibrar as contas públicas, através da redução estrutural da despesa pública. Porém, não se vê que despesa a reduzir, sendo esse o grande problema do programa de ajustamento.

Com efeito, não obstante a estimativa de obtenção de um excedente primário ainda mais robusto do que em 2014 (o que era já inédito), a verdade é que esse reforço do saldo primário positivo não decorre da redução da despesa total primária (que, pelo contrário, sobe), mas sim de um aumento ainda maior do total das receitas, em especial das receitas fiscais (5%).

A consequente consolidação do enorme aumento de impostos

E o problema é que a economia não gera receitas para suportar este nível de despesa pública. Por isso, o valor cobrado a título dos grandes campeões da arrecadação de receita (o IVA e o IRS), continua a crescer, quer em termos absolutos, quer ainda em percentagem do PIB. E é este o principal pecado destes brutais aumentos de impostos, pois este segundo crescimento é grave, por significar que na divisão do bolo cabem cada vez mais fatias ao Estado e menos fatias às famílias.

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Não é pois de estranhar que cresça um sentimento de enorme fadiga fiscal e que este esteja a dar lugar a uma crescente irritabilidade fiscal.

A enorme expectativa sobre as reformas tributárias em curso

Era, pois, com expectativa que se aguardava um sinal de desagravamento da “gula” estatal, pela moderação da despesa pública e, concomitantemente, da pressão fiscal. No entanto, a necessidade de tornar Portugal o país europeu mais amigo do investimento, para poder atrair investimento e por essa via criar emprego, torna ainda mais difícil que a moderação fiscal possa ocorrer ao nível do IRS e do IVA, por ser imperioso, em primeiro lugar, desagravar a tributação das empresas, pois são estas que realizam investimento e criam emprego.

Por isso mesmo, a reforma do IRS, conduzindo a um alívio das contas familiares, teria de ser compensada com outra tributação complementar. No caso, a decorrente da tributação verde. Porém, ou essa tributação incidirá mais uma vez sobre as famílias, ou incidirá sobre as empresas. Mas se assim for, nesse caso, terá efeitos nefastos na captação de investimento, mesmo que poluente. E falta saber se, na situação de aperto em que nos encontramos, estamos em condições de ser realmente seletivos no investimento que pretendemos acolher.

Assim, com alívio, constatou-se que a reforma da tributação verde primava pela sua moderação, pretendendo atrair menos de 200 milhões de euros adicionais de receita. No entanto, sendo assim, as boas ideias constantes da comissão de reforma do IRS, já severamente limitadas nos seus impactos orçamentais (e, portanto, também no alívio das famílias) pela necessidade de realismo orçamental, ficam ainda mais limitadas. Eventualmente, gravemente limitadas, explicando porque razão nenhuma das duas propostas foi apresentada antes da proposta orçamental, como ocorreu o ano passado com a reforma do IRC, mas sê-lo-ão só após a apresentação do orçamento na Assembleia da República.

E se assim é, também não há espaço orçamental, leia-se dinheiro, para desagravar a “aberração fiscal” denominada sobretaxa. Daí a ideia verdadeiramente inovadora do reembolso, total ou parcial, mas condicionado, da sobretaxa no ano seguinte ao da sua arrecadação.

A ideia tem a virtualidade de permitir alocar às famílias, e não ao Estado, o sucesso da arrecadação de receita. Mas o certo é que a sua restituição está dependente da superação da cobrança prevista para os dois campeões referidos (o IVA e o IRS), metas essas já muito superiores ao estimado para 2014, o que por sua vez é já superior ao histórico de cobrança desses impostos. É pois difícil poder considerar esse reembolso como provável.

E mesmo que tal ocorra, poderá suceder que o total das receitas fiscais tenha tido uma evolução pior do que a das receitas do IVA e do IRS, ou que a meta do défice público não tenha sido atingida, o que seria ainda pior. Nesses casos, a prioridade que deve ser dada à consolidação das contas públicas aconselharia a não reembolsar impostos e, no entanto, tal reembolso verificar-se-ia. O que significa que este inovador mecanismo pode colocar uma pressão adicional na redução do défice.

Apesar de tudo, a enorme estabilidade fiscal, sob o nome de código “87, nº 1”

Deve ser conferida estrita prioridade à redução dos impostos incidentes sobre as empresas, pela necessidade de atrair investimento e de criar emprego. Mas, mais importante ainda do que a taxa de tributação, sobretudo a meramente nominal, é a simplicidade, previsibilidade e estabilidade dos impostos incidentes sobre as empresas.

Por essa razão e não obstante outras alterações menores ocorridas e a ocorrer em 2014 e outras ainda que seria importante introduzir no imposto, não constar da proposta orçamental outra alteração ao Código do IRC que não a do artigo 87º, nº 1 do mesmo Código, consistindo esta alteração na redução em dois pontos percentuais da taxa nominal, tendo essa alteração sido anunciada, com largo consenso político, há doze meses, é algo de extraordinário.

E essa moderação é extraordinária porque é inédita no nosso país, onde em cada ano é usual haver uma errática e imprevisível revolução fiscal, uma das principais razões de queixa de empresários e investidores (efetivos e meramente potenciais, afastados por essa imprevisibilidade fiscal). Assim, a enorme estabilidade que representa esta modesta alteração ao IRC é algo que de modo algum deve ser menosprezado.

O relevo maior, já quase enorme, da fiscalidade menor e da parafiscalidade

Continuando, no entanto, o Estado a carecer de recursos para satisfazer a sua insaciável “gula”, torna-se necessário encontrar outras fontes de receita ainda não sujeitas à erosão da fadiga e irritabilidade fiscais. O que conduz ao aumento crescente da relevância de tributos menores, fora dos clássicos IVA, IRS e IVA. Aumenta assim uma parafernália de impostos, contribuições e taxas, por exemplo, os ligados às bebidas e ao tabaco, aos combustíveis, à energia e às emissões, ao jogo ou aos sacos e produtos farmacêuticos.

E renasce até a ideia de tributar as transações financeiras, quando se sabe que o capital é o recurso mais escasso em Portugal e que a sua tributação, ainda que em mercado secundário, tornando-o mais caro, terá como efeito torná-lo ainda mais escasso em Portugal.

O que também pode querer dizer que poderá não estar para breve a reforma da tributação do imobiliário com abolição do “imposto mais estúpido do mundo”, o IMT.

Os enormes riscos de que algo corra mal no cenário macro económico e de um renovado enorme aumento de impostos (indiretos)

Não obstante toda esta enorme pressão do aspirador fiscal, sugando boa parte da riqueza de empresas e famílias, partimos para o desafio anual já em desvantagem, pois nem sequer nos propomos atingir o défice de 2,5% do PIB a que estávamos comprometidos (e que decorria já da revisão em alta da meta inicial de 1,9%), pois o défice previsto na proposta é de 2,7%.

E, mesmo assim, basta que algo corra mal no cenário macroeconómico de base (por exemplo, crescimento do PIB inferior a 1,5%, desemprego superior  13,4%, variação em alta das taxas de juro, variação do cambio do dólar ou do preço do petróleo, ou ainda da procura nos mercados nossos principais clientes, ou turbulências financeiras, orçamentais, políticas ou militares em geografias próximas da nossa) e mesmo essa meta de 2,7% poderá ser uma miragem.

O que poderá significar que em vez de um alívio fiscal, estejamos em breve a falar de um “plano B”, correspondente à arrecadação de receita adicional onde esta se tem mostrado mais resiliente, por efeito do inequívoco sucesso do combate à fraude e à evasão fiscais: o IVA.

No entanto, espera-se que possamos antes falar, muito brevemente, de duas reformas benignas: a da tributação verde, pela sua moderação e a do IRS, por ser amiga das famílias, da natalidade e da mobilidade social.

Este artigo é da autoria de Jaime Carvalho Esteves, PwC Tax Lead Partner