Se há uma figura do cinema com a qual Michel Houellebecq tem um parentesco evidente, chapado, é o cão Droopy, criado por Tex Avery: mesmo ar pachola, mesmos olhos ensonados, mesma impassibilidade exasperante, mesmo débito verbal escasso e monocórdico. Se não fosse um escritor e uma figura “pop”, o autor de “Plataforma” podia muito bem ter sido um actor da escola da chamada “comédia branca” (é um elogio, não é racismo).

Aproveitando o lançamento da tradução portuguesa do novo livro de Michel Houellebecq, “Submissão”, que em França deixou furiosos os bem-pensantes da classe mediático-intelectual, os melindrosos do multiculturalismo e os hemofílicos da “diversidade”, estreiam-se hoje em Portugal dois filmes protagonizados pelo escritor, “Experiência de Quase Morte”, do duo Benoît Delépine/Gustave Kervern, autores de fitas anarco-punks e politicamente incorrectíssimas como “Aaltra” (2004), “Avida” (2006) ou Mammuth (2010), e “O Rapto de Michel Houellbecq”, de Guillaume Nicloux.

A associação de Houellebecq ao cinema não é de agora, já tem bastantes anos. O escritor cursou cinema, assinou algumas curtas-metragens sob o seu nome verdadeiro, Michel Thomas, em 1999, escreveu o argumento de “Extensão do Domínio da Luta”, de Philippe Harel, com base no seu livro homónimo, e em 2008 adaptou à tela outro livro seu, “A Possibilidade de uma Ilha”, com Benoît Magimel e Patrick Bauchau no elenco, estreando-se assim a realizar longas-metragens.

“Trailer” de “A Possibilidade de uma Ilha”

Os dois filmes que hoje chegam aos cinemas portugueses têm várias coisas em comum, para além da presença de Michel Houellebecq como actor. Ambos se baseiam em factos reais ou especulam a partir deles; em ambos a personagem principal desaparece, voluntariamente em “Experiência de Quase Morte”, contra sua vontade em “O Rapto de Michel Houellebecq”. Nos dois, o escritor interpreta uma personagem e também a si mesmo (mais acentuadamente no filme de Nicloux) e usa as duas fitas como uma tribuna cinematográfica informal, para falar das coisas da existência, das suas manias e preferências, do seu vício do fumo e gosto por um bom vinho, de escrita, de literatura, de criação artística, das perversões dos escritores e também de política. Sendo que no final de “O Rapto de Michel Houellebecq” tem palavras duríssimas contra a União Europeia e contra o que pensa serem cada vez mais óbvios simulacros de democracia em que vivemos, da França aos países nórdicos, reservando uma aversão muito especial à Suécia, “país totalitário onde já não se pode nem pensar”.

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“Experiência de Quase Morte” parte de um episódio real. Um cidadão francês fartou-se da vida que tinha e esteve desaparecido na natureza durante um punhado de meses. O filme foi rodado por Delépine e Kervern com serviços mínimos: uma quase não-história, orçamento microscópico, equipa reduzida, câmara de vídeo analógica. Os realizadores disseram que queriam realizar um filme que fosse mais “como um poema do que como um romance”. E a sê-lo, “Near Death Experience” é um poema em verso livre e de registo filosofante-confessionalista, um longo monólogo interior de Paul, a personagem de Houellebecq, um homem banal com emprego e família, que um belo dia vai dar uma volta de bicicleta e decide suicidar-se no meio da natureza.

https://youtu.be/TJ5qlNmv59M

“Trailer” de “Experiência de Quase Morte”

A visão de Houellebecq, em “kit” de ciclista profissional, a andar por montes e vales enquanto rumina sobre o “Sentido Disto Tudo” (ou a falta dele) e o cansaço e a inutilidade de estar vivo, a chupar no seu cigarro, a beber água de piscinas, a dançar ao som dos Black Sabbath ou a falar com uma entidade sobrenatural que pode ou não ser imaginária e se chama Endorfina, transforma “Near Death Experience” no filme mais radicalmente desconcertante, rarefeito e verdadeiramente marginal da dupla francesa, mas ancorado no real concreto pelas paisagens e pela presença de um Houellebecq que circula entre a comédia e o patético, que ora nos põe a rir, ora a reflectir. Dizer que “Near Death Experience” é um OVNI cinematográfico, é pouco: o filme é o OVNI dos OVNIS cinematográficos.

Quanto a “O Rapto de Michel Houellebecq”, trabalha sobre um equívoco que se deu em 2011, quando correu que o vencedor do Goncourt teria sido raptado pela Al-Qaeda quando não apareceu para fazer uma “tournée” de promoção do seu livro “O Mapa e o Território”, o que se revelou ser um boato (o escritor evaporou-se, na realidade, durante vários dias, e quando reapareceu, nunca disse onde tinha estado, o que ajudou ainda mais à especulação dos media). A fita de Guillaume Nicloux é uma ficção especulativa muito pândega sobre o que poderá ter acontecido nessa altura, dobrada de anti-filme de “rapto de celebridades” de fundo absurdo, já que nunca sabemos quem ou porquê mandou raptar o escritor, nem quem e porquê paga o resgate.

“Trailer” de “O Rapto de Michel Houellebecq”

Michel Houellebecq é raptado no seu apartamento parisiense  por três grunhos com ligações ao mundo dos desportos de combate, da segurança privada e das tropas especiais, aos quais sobra em músculo e peso o que falta em massa cinzenta; e instalado na casa dos pais de um deles, um plácido e afável casal de velhotes ao qual não faz a menor espécie terem lá um famoso escritor em cujo sequestro o filho participou.

Apesar de o escritor ter de andar sempre algemado, de não poder passar a vedação do jardim da casa e de se queixar a todo o pé de passada de não o deixarem ter o seu isqueiro, raptado e raptores acabam por se dar lindamente e até têm conversas profundas ao longo de refeições bem regadas (tal como Houellebecq, os restantes membros do elenco também se interpretam a si próprios, e os diálogos são quase todos espontâneos ou improvisados a partir de “deixas” do realizador ou do próprio autor).

https://youtu.be/CV9Dx3fO4JA

Entrevista com Michel Houellebecq e Guillaume Nicloux

O autor de “A Possibilidade de uma Ilha” e os três avantajados e broncos estarolas que o vigiam até procuram compreender os interesses uns dos outros: Houellebecq tem lições de artes marciais e de treino de cães de ataque, e os seus captores discutem com ele o seu livro sobre Lovecraft, “O Senhor Dos Anéis” e as diferenças entre prosa e poesia.

Situado algures entre uma comédia de Louis de Funès versão de guerrilha e uma ficção pseudo-documental onde cada protagonista é ao mesmo tempo ele mesmo e uma personagem, “O Rapto de Michel Houllebecq” é um filme insolitamente desopilante e saudavelmente irrotulável. Quer este, quer “Experiência de Quase Morte”, revelam que além de uma estrela da literatura, Houellebecq é também uma estrela de cinema. Bem, pelo menos da pontinha da franja independente, mais pobretanas e mais excêntrica do cinema francês.