O calor dos últimos dias não fazia adivinhar que a noite estaria tão fria. O vento, mais forte do que o habitual para Lisboa, apanharia desprevenido o incauto que não ligasse às palavras dos meteorologistas, que já andavam a avisar há dias que o verão antecipado a que tínhamos tido direito não ia durar muito mais tempo. Apanhou desprevenida a reportagem do Observador, por exemplo, convidada a palmilhar as ruas da capital em busca de quem faz da rua a sua casa e tem de se defender das mudanças bruscas do tempo só com o que tem à mão – muitas vezes, pedaços de cartão ou um cobertor rafado.

O convite foi cortesia da Santa Casa da Misericórdia, que pela segunda vez promoveu a contagem dos sem-abrigo na cidade. Para tal pôs 1.200 voluntários nas ruas, divididos por 228 equipas que tinham como missão calcorrear Lisboa de cima a baixo. A acompanhá-los, um batalhão de jornalistas, talvez longe de saber que a fria noite de quinta-feira se tornaria num jogo do gato e do rato.

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Santana Lopes no Campo das Cebolas, ao lado do presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior – Lara Soares da Silva/Observador

Primeiro jogo: Campo das Cebolas

Pouco depois das 21h desta quinta-feira era grande o aparato mediático junto às instalações da Santa Casa na Rua da Prata. O provedor da instituição, Santana Lopes, vestido com uma t-shirt a rigor, falava a quem o quisesse ouvir sobre o trabalho dessa noite. Os voluntários começavam a dividir-se e a partir para os pontos da cidade que lhes haviam sido destinados. Os jornalistas eram também colocados em grupos específicos e seguiam atrás das equipas.

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A missão da noite era relativamente simples: os voluntários, em grupos de quatro ou cinco, andavam por um conjunto de nove ou dez ruas e anotavam o número de sem-abrigo a dormir em cada uma delas. Nada mais. Não estavam previstos contactos nem distribuição de comida. Só contas de somar.

Como numa procissão a que só faltavam as velas, lá seguiu uma comitiva para o Campo das Cebolas, determinado a caminhar até à estação do Oriente. Chegados à praça ribeirinha, ‘cadê’ os sem-abrigo? “Estavam aí quatro ou cinco, mas fugiram porque viram muita gente”, dizia um voluntário.

A primeira tentativa não correu bem. Passemos à frente.

Segundo jogo: Rua do Terreiro do Trigo

Bastaram poucas centenas de metros para que o Observador e outros órgãos de comunicação perdessem o rasto ao grupo de voluntários que estavam a seguir. Entre o edifício da Alfândega e o Museu do Fado, na Rua do Terreiro do Trigo, pessoas eram uma visão rara. Excetuando um grupo de turistas estrangeiros que disputava um táxi, Alfama parecia um local adormecido.

A segunda tentativa não correu bem. Passemos à frente, com mudança de estratégia.

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A carrinha da Santa Casa

Terceiro jogo: Rua Rosa Araújo

A carrinha da Santa Casa que andava pela zona de Santa Apolónia acabou por ser útil. Alguma apreensão e dois telefonemas depois, eis a reportagem do Observador a galgar a Avenida da Liberdade ao encontro de um grupo que, dizem-nos, encontrou um grande número de pessoas sem-abrigo.

Os voluntários estão na Rua Rosa Araújo quando a carrinha da Santa Casa os surpreende. O trabalho ali já se acabou, dizem, apontando para uma lista de ruas com um visto à frente. São 22h30, a zona foi relativamente fácil de cobrir porque não é das que mais pessoas sem-abrigo tem. Uns metros mais abaixo há uma rua com 23 pessoas a dormir na rua. Talvez lá dê para fazer reportagem.

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Quarto jogo: Rua Mouzinho da Silveira

É quase uma ironia: a Rua Mouzinho da Silveira, que começa na Barata Salgueiro e desagua na Braamcamp, é também aquela onde se situa o BESI. Até há uns meses, era o Banco Espírito Santo Investimento, mas entretanto o nome da família deixou de ser motivo de orgulho para uma instituição financeira e agora é só BESI. A fachada do edifício envidraçado do BESI tem, como em Times Square, um placard eletrónico onde passam as cotações da bolsa, indicando que ali se trata precisamente disso: alta finança.

É quase uma ironia, dizíamos: na rua do BESI há 23 pessoas que dormem na rua, um record na zona, afiançam os voluntários que a percorreram. Falar com essas pessoas é que é impossível, pelos vistos, pois já estão todas a dormir àquela hora.

A reportagem está quase a abortar. Só não aborta porque aparece Carlos Gonçalves, um homem forte de 47 anos que passou 14 a dormir na rua e que entretanto se tornou uma espécie de estrela mediática. “Já falei com quase todas as televisões”, diz calmamente, para depois passar a assuntos mais sérios. Segundo Carlos, vendedor da revista Cais nas redondezas, as diversas instituições que apoiam os sem-abrigo “deviam unir-se para trabalhar juntas” e não puxar cada uma para seu lado.

“Se é para esperar um dia para ter dois papos-secos e um copo de leite, mais vale uma pessoa matar-se”, diz Carlos taxativo, sem contudo abandonar o tom calmo que o caracteriza.

A conversa até estava agradável mas parece que há um grupo de voluntários ainda a contar sem-abrigo no Marquês de Pombal. Desculpe lá, senhor Carlos, mas temos de ir ver se é verdade. Não é. Já acabou tudo. A contagem foi feita. Nós é que não conseguimos ver nada.