Vivemos de excessos. Manias. O que antes era quase obrigatório torna-se maldito. Até há bem pouco tempo fumar era sinónimo de libertação. Fumava-se em todo o lado. Fumava-se na cama. Até havia colchões especiais para isso! (1) Os médicos fumavam. E não apenas nos anúncios (2). Fumavam  durante as consultas e nos corredores dos hospitais. Espera-se que nunca o tenham feito durante as operações mas nunca fiando, que eram tempos de desatino!

As empresas empenhavam-se em oferecer cinzeiros aos seus clientes (3 e 4). De algumas delas, com o ritmo com que a coisa vai, pode nem sobrar muito mais que os cinzeiros com o seu logotipo (5).

Benfica era (também) marca de cigarros (6) e o Sporting (7) vendia cigarros não necessariamente para os sportinguistas mas sim  para “um homem duro que fuma cigarros para homem”. Admitamos que isto nos conduz a um dilema existencial da masculinidade em geral e do sportinguismo em particular:  apenas os sportinguistas eram homens duros que fumavam cigarros para homem? E se por mais improvável que tal pareça um benfiquista fumasse cigarros Sporting? Ou se um sportinguista fumasse outro cigarro que reflexos tinha isso na sua masculinidade? E no seu sportinguismo?

Aqui chegados vamos fazer um esclarecimento: cigarros e sexo andavam ligados (8),

A perspectiva masculina era dominante (9) e ninguém se ralava com isso. Não, não estou a referir-me aos inócuos cigarros Marialvas (10) ou aos apelos à infidelidade à companheira de todos os dias dos cigarros Surf (11) nem sequer às promessas de quilómetros de prazer (12) mas tão só à mania em alguma desta publicidade de meter as pobres mulheres olhando embevecidas para uns seres (masculinos obviamente) que lhes lançam fumo para os olhos (13). E elas nem lacrimejam e continuam a contemplá-los hipnotizadas como se estivessem num dos mais recentes cartazes do PS.

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Honra lhes seja feita outras marcas como os Antoninos (14) apostavam num imaginário tão mas tão oposto a este lugar-comum que até parece que o acto de fumar levava directamente os menos politizados, como então se dizia, para uma mesa-redonda sobre o Terceiro Mundo mal acendiam o cigarro. Fumar com tal enquadramento intelectual, além de fazer mal à saúde, como sucedia com todas as outras marcas, devia ser também uma forma superior de aborrecimento.

Na televisão, essa espécie de templo iluminista onde se antecipam os comportamentos que a sociedade deve adoptar, fumava-se nos concursos, nas entrevistas e nos debates. Na verdade, à excepção da missa dominical, não deve haver programa em que não se tenha fumado. E mesmo neste caso só diante das câmaras existiu tal reserva porque o clero, não se sabe se num sinal de progressismo se de espírito pecaminoso ultra-montano, fumava com regularidade. Dos simples padres aos cardeais. Só Deus sabe!

Na política não podia faltar o tabaco e nesse sentido o 25 de Abril de 1974 foi um maná para a Tabaqueira. Na direita, quiçá para expiar a angústia da semi-clandestinidade de terem de se dizer de esquerda, fumava-se intempestivamente: de Adelino Amaro da Costa do CDS é difícil arranjar uma fotografia em que não esteja a fumar (15 e 16). Já Sá Carneiro parece pegar nos cigarros para acalmar (17 e 18) sendo que para a irritação do fundador do PPD nem era necessária a deriva autoritária do país. Bastava-lhe a conflitualidade interna do seu partido, então como agora uma agremiação de inimigos de estimação. Quando a doença e a irritação com o partido  levaram Sá Carneiro para fora do país substituiu-o Magalhães Mota (19), que não só era mais calmo como fumava cachimbo, o que é muito mais fotogénico e relaxante.

No PREC, à medida que a tensão aumentava, as baforadas iam em crescendo: no debate Soares-Cunhal os cinzeiros nas mesas não eram apenas decorativos (20).

Da mesa dos jornalistas veio tanto fumo que quase parecia que os moderadores estavam a querer dizer algo aos telespectadores (21). E durante a maratona eleitoral de 25 para 26 de Abril de 1975 os jornalistas iam anunciando resultados e queimando cigarros (22). Entretanto nos quartéis a legitimidade revolucionária era defendida de cigarro na mão (23) ou mesmo de charuto na boca, que em matéria tabágica a esquerda radical sempre se tratou bem e bem lá no fundo todos ensaiavam a pose para Che ou Fidel. (24)

Na Constituinte, e no parlamento que lhe sucedeu em 1976, fumava-se durante os trabalhos (25) e nas pausas dos trabalhos (26). Nos corredores, nas salas, no hemiciclo: o chefe do Governo estar a discursar e os deputados mais a mesa a fumar, era coisa normalíssima (27). Havia ministros que praticamente nunca vimos sem ser a fumar como foi o caso de Lopes Cardoso que entre os problemas da Reforma Agrária e o pensar da esquerda fumava cigarros atrás de cigarros (28). Tivemos uma candidata (falhada) à Presidência da República que praticamente só vimos a fumar (29) e uma deputada, Natália Correia, que usava boquilha (30).

Ao contrário do que sucedia com Soares (3o), Cunhal não fumava, ou pelo menos os portugueses não se lembram de o ver fumar, mas outra coisa diriam os soviéticos (31) e a iconografia do partido sabia que os cigarros faziam parte do imaginário (32).

Os partidos que se saiba não fizeram tabaco com a sua sigla, mas cinzeiros, isqueiros e carteiras de fósforos têm sido portadores da sua mensagem (33 a 41).

Os tempos é claro que mudaram. E muito premonitoriamente começámos a ouvir falar de austeridade entre baforadas de cachimbo (42). No mais, e após um ano sem troika não se sabe se os portugueses continuam suaves (43 e 44).

Mas como esta é uma terra de fé fica bem terminar este artigo com uma espécie de profecia ou melhor dizendo três: a concretizar-se a vinda do Papa Francisco a Fátima em 2017 não é preciso ser vidente para afirmar que dificilmente se farão cinzeiros para comemorar a vinda de Sua Santidade (45). Nos próximos tempos não veremos cartazes como este da candidatura presidencial de Fernando Rosas (46) e sobretudo nunca mais teremos maços de cigarros tão bem conseguidos quanto foram os dos Definitivos e dos Provisórios (47 e 48).

Os maços de tabaco estão em vias de se assemelhar a um mural do MRPP: muita mensagem e promessas de castigo aos prevaricadores.

Fumar depois de ter dado quilómetros de prazer passou a dar toneladas de problemas.