É muito mais do que um lançamento. O novo livro de Harper Lee é um acontecimento que gerou questões sobre a sanidade mental da autora de 89 anos e já se tornou no livro impresso de maior pré-venda na Amazon desde 2007, quando saiu o último livro de Harry Potter, anunciou o retalhista online. Tudo isto antes sequer de ser conhecida uma única palavra de Go Set a Watchman. Mas isso mudou. O primeiro capítulo teve pré-publicação esta sexta-feira e as impressões iniciais variam entre a nostalgia e o espanto.

” Jean Louise Finch sempre fez esta viagem pelo ar, mas decidiu fazer o trajeto entre Nova Iorque e Maycomb Junction de comboio, por alturas da sua quinta viagem anual a casa”. Excerto de Go Set a Watchman

O norte-americano The Wall Street Journal e o britânico Guardian fizeram a pré-publicação do primeiro capítulo de Go Set a Watchman, o muito aguardado segundo romance da autora. Os leitores do Guardian podem contar ainda com animações multimédia e até um ficheiro áudio com a atriz Reese Witherspoon a narrar a história que, para muitos, é também uma viagem a casa. Que é como quem diz ao lar da escrita da mulher que, com apenas um livro, lançado há mais de meio século, gravou para sempre o seu nome na história da literatura.

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Em 1960, Harper Lee estreou-se com o romance To Kill a Mockingbird (publicado em Portugal pela Relógio D’Água como Mataram a Cotovia) e ganhou logo um Pulitzer. Os elogios somam-se até aos dias de hoje, assim como as vendas, que ascendem aos 40 milhões de exemplares. Para Go Set a Watchman, a editora HarperCollins encomendou dois milhões de exemplares, um número muito alto que deverá ser vendido sem qualquer problema, seja pelo sucesso do livro de estreia, seja pelo mito em que Harper Lee já se tornou.

Go Set a Watchman foi escrito em meados da década de 50, antes de Mataram a Cotovia. Na verdade, o livro emblemático de Harper Lee foi pensado a partir deste manuscrito inédito. Quando uma editora leu as memórias de infância de Scout Finch em Go Set a Watchman, sugeriu à escritora que desenvolvesse o romance a partir da perspetiva de Scout, que acabaria por se tornar a heroína do clássico americano. O segundo romance de Harper Lee conta com muitas das personagens do primeiro (mas também muitas novas) e passa-se na década de 50 (20 anos depois do primeiro) na cidade fictícia de Maycomb, no Alabama, acompanhando a visita de Scout Finch, agora adulta, ao pai, Atticus.

A mulher que ajudou Truman Capote na investigação que deu origem à obra A Sangue Frio pensava ter perdido este manuscrito há décadas, mas a amiga e advogada encontrou-o e Lee decidiu publicá-lo. O livro sai no dia 14 de julho, mas desde que se soube da novidade, em fevereiro, que o mundo literário aguarda impaciente.

“Era o meu primeiro livro e fiz como me disseram para fazer”, disse a escritora, em comunicado, citada pelo New York Times. “Não sabia que tinha sobrevivido. Fiquei tão surpreendida e feliz quando a minha querida amiga e advogada Tonja Carter o descobriu. Depois de muito pensar e duvidar, dei-o a ler a algumas pessoas em quem confio e fiquei muito satisfeita quando me disseram que achavam que devia ser publicado. Sinto-me grata e maravilhada por saber que este livro será publicado depois de tantos anos”.

Harper Lee expressou-se através de comunicado porque não consegue falar, nem ouvir, desde que sofreu um AVC em 2007. Logo surgiram versões contraditórias quanto ao estado da saúde mental de Lee, boatos sobre uma possível coação para o manuscrito ser publicado e consequentes apelos ao boicote do novo livro. Medo de ver manchada a reputação intocável da autora? As autoridades iniciaram uma investigação, que concluiu que Lee queria mesmo ver o livro publicado e estava na posse das suas faculdades.

E eis-nos com o primeiro capítulo à frente dos olhos. Os primeiros comentários da crítica às primeiras páginas (de um total de cerca de 300 que terá o livro completo) oscilam, com os elogios em vantagem. No Times, o crítico Robbie Millen considera o capítulo uma amostra promissora. Mas Mick Brown, do Telegraph, considera que teria sido melhor para os milhões de leitores que adoram Matem a Cotovia, bem como para a reputação de Harper Lee, se o manuscrito nunca tivesse sido publicado.

No New York Times, Alexandra Alter escreveu que o romance partilha o ADN literário com a primeira obra de Lee, desde o humor à densidade das personagens, mas que não haja dúvidas de que esta história é diferente, narrada na terceira pessoa, sob a perspetiva de Jean Louise.

No Guardian, Xan Brooks considerou que “tudo isto, ao que parece, é inteiramente adequado – embora não da maneira que a autora pretendia. As décadas passadas dão a Go Set a Watchman uma magia agridoce. (…) Em vez de uma explosão para um território virgem, transporta-nos, de forma encantadora, até um passado profundo”.

Do lado do público, o que mais está a gerar polémica é a morte de uma personagem importante no livro Matem a Cotovia (quem não gosta de saber pormenores antes do tempo deve evitar as redes sociais por estes dias).

Quem quiser ler a obra em inglês vai poder saber tudo já a partir de 14 de julho. Os leitores portugueses terão de esperar até ao último trimestre do ano, data que a Editorial Presença aponta para a publicação de Go Set a Watchman em Portugal.