As expetativas confirmam-se e o mar prega uma partida. Não há ondas. A organização bem manda toda a gente estar em Supertubos às 8h, bem cedinho, para ver se há ondas que cheguem para se arrancar com o Moche Rip Curl Pro. Mas poucos respeitam a chamada. Não é preciso ser bruxo para saber que terça-feira era dia de mar calmo e sem agitação suficiente. Faltam uns 10 minutos para a hora marcada e a estrada de terra que conduz ao local da prova, que se estica em paralelo à praia, atrás das dunas, dá a melhor das pistas para se perceber que não haverá surf para ninguém: do lado direito estão espetadas 36 placas, uma para cada surfista, distribuídas pela ordem do ranking e com fotografia incluída, para sinalizarem os lugares de estacionamento. O problema é que nem uma dezena de carros ali está.
Ultrapassada a zona de estacionamento, nem 100 metros são precisos percorrer para se chegar à tenda da prova. A meio caminho o telemóvel vibra e a mensagem que o abana confirma o cenário: “Lay Day Called For Moche Rip Curl Pro Portugal”, que é como quem diz, hoje é dia de descanso. Chega-se à estrutura montada pela organização e estão umas quantas dezenas de pessoas. De surfistas o Observador vê o australiano Bede Durbidge e alguns brasileiros. Gabriel Medina e Felipe Toledo estão em terra, com camisolas e gorros vestidos, enquanto Miguel Pupo se aventura na água, só porque sim, com esperança a mais para tão poucas (ou quase nenhumas) ondas. Olha-se para as previsões da World Surf League (WSL) e percebe-se que isto deverá acontecer até sexta-feira, dia em que o mar cresce e as ondas acordam.
Um dia de espera num evento destes significa um dia em que os surfistas podem fazer o que lhes apetecer. Uns aproveitam para descansar, há quem vá pôr o turismo em dia e outros aventuram-se pela gastronomia, mas alguém insiste sempre em entrar no mar e praticar. Como Peniche assenta numa península, há praias viradas para todos os lados e o vento que estraga as ondas num sítio pode estar a melhorá-las noutro. É por isso que pegamos no carro e vamos espreitar longe de Supertubos. Entre estrada de alcatrão no meio de edifício e caminho de terra entre canaviais, o Observador chega à praia da Almagreira. O mar está pouco simpático, cheio de corrente, ondas desordenadas e vento a soprar contra a terra. Mas estão duas pessoas na água, a remarem até mais não, e no topo de uma duna está um canhão fotográfico apontado a ambas.
Rory é quem o segura. É havaiano e diz-nos que no mar está o amigo e compatriota Mason Ho, com o pai, Michael. São fáceis de distinguir: o mais novo tem a cabeça coberta de cabelo, o mais velho tem uma careca que não engana. Mason tem 26 anos, está no 85.º lugar do QS (Qualifying Series), foi um dos felizardos que recebeu um convite da organização para participar na prova de Peniche. Michael está com 58 anos, chegou a ser 3.º classificado do CT (Championship Tour) no seu tempo e tem como irmão mais novo Derek Ho, campeão mundial em 1993. Ou seja, a moral desta história é que Mason Ho vem de uma família que vive à volta do surf — e ainda há Coco Ho, a irmã que compete no circuito feminino. Talvez seja por isso que demora a sair da água, insistindo sempre em apanhar mais uma onda, enquanto o pai esbraceja, já na areia, para o chamar para terra. “Às vezes fica na água durante quatro horas. Surfa durante duas, depois os amigos aparecem e acaba por surfar mais outras duas horas. Nem sequer descansa para comer! Ele diverte-se demasiado, adora isto“, garante Rory, sem largar o tripé que tem plantado na duna.
É por tudo isto que Mason Ho “é uma chatice do caraças [ou pain in the ass, como Rory diz] para filmar”. Mas não para conversar. Quando o havaiano está a acabar de trepar a duna já o pai Michael acabou de se vestir no carro. Aproximamo-nos, perguntamos se podemos conversar e ambos dão o aval com um sorriso. “Podíamos ter vindo uma hora mais cedo, ainda teríamos apanhado um pouco de maré”, diz Michael, o pai que disfarça o lamento na boa-disposição. “Olhámos para o mar durante 30 minutos e estava ao rubro. Depois, quando entrámos parece que encolheu”, explica Mason, ainda elétrico, com a voz a galopar a um ritmo frenético. Às vezes atropelam-se um ao outro e falam ao mesmo tempo, como quem tem pressa em dizer algo antes que o outro o diga — “Assim que a maré começa a baixar as ondas ficam más e começam a espancar-te lá fora”, diz o pai, antecipando-se ao filho.
Michael carrega a voz de sabedoria, embora não seja a dele que mais sabe sobre as ondas de Peniche. “Eu já cá vim um par de vezes, o Mason não…”, atira, dando a deixa por onde o filho pega. “Sim, já cá tinha estado em Portugal umas dez vezes. Mas é a primeira vez que estou em Peniche. Estamos cá há sete dias e já consegui surfar algumas vezes em Supertubos. Yeah, nos primeiros dois dias até apanhámos ondas deste tamanho”, garante, enquanto reforça as palavras com um braço esticado para o alto, exemplificando o tamanho das ondas que já encontraram na praia onde está montado o campeonato. Feitas as contas aos cerca de 1,75m que Mason tem de altura mais o metro que acrescenta com o braço erguido no ar, seriam mais de dois metros e meio. “So sick! Estavam enormes!”, diz, excitado, arrancando um riso e um aval ao pai: “O Mason adora essas ondas”.
Parecem ser mais do que pai e filho. Onde um para de falar o outro pega a deixa, dividem frases para se completarem e riem-se das mesmas piadas. Não podiam estar mais à vontade um com o outro. “Esses primeiros dias em Peniche foram demais. Até o pai apanhou umas quantas!”, continua Mason, saudoso das primeiras sessões de surf na praia de Supertubos. O pai embrulha a melancolia, confirmando que esses dias chegaram para apanhar várias ondas, “na cabeça e tudo”. Voltam a partilhar uma gargalhada. Depois vem a pergunta que os divide: quem é o melhor surfista? Antes de abrirem a boca, cada um estica o dedo e aponta o braço para o outro. “Os tempos mudam. Quando ele ainda estava a aprender a remar talvez ainda estivesse à frente, mas não desde que ficou com este tamanho”, brinca Michael.
Mason Ho já é maior de idade e por isso vai partilhar um heat com Gabriel Medina e Miguel Pupo, dois brasileiros, logo na primeira ronda. “Oh, é bom, melhor do que surfar contra dois havaianos”, reage, com o pai a rir-se, a alto e bom som. “Mas a sério, no fundo somos todos parecidos. Alguns melhores que outros, claro, mas assim que aquela corneta toca e os 30 minutos começam a contar, somos todos iguais. É tudo uma questão de como te ligas à água”, explica, já sem tantos sorrisos, quando o assunto se torna sério e toca na competição em Supertubos. Mason não quer “subestimar adversários nem nada disso”. Tudo não passa de um desabafo, honestidade de quem até “gosta mais de surfar contra esses tipos, os melhores” do circuito. “Pode não soar bem, mas é o que sinto”, garante, já depois de falar de Gabriel Medina como “um dos surfistas preferidos” e que “mais gosta de ver”.
Mesmo que tenha sido ele, o brasileiro que foi campeão mundial (2014) aos 20 anos, a eliminá-lo na terceira ronda em Bells Beach, em abril, na única etapa do circuito em que esteve até agora. “É esquisito, é como se deixasses de te importar tanto com o resultado por estares a competir contra alguém tão bom. Sei lá, é como se te importasses menos com o resultado, mais mais com o adversário, sabes? De certeza que haverá uma palavra para isto!”, exclama, à boleia de um devaneio no qual não nos metemos. Por esta altura Michael já está calado há muito e, do nada, estende-nos a mão, força o cumprimento e torna-o num de despedida. Mason percebe a intenção, despede-se também, menciona o nosso nome, prova que não esquece. Nunca desfaz o sorriso nem para de desejar que tudo nos corra bem. Um documentário da Red Bull já apelidou este havaiano de Embaixador da Diversão. Ainda é preciso explicar porquê?