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Tem o prestígio, as ondas e o público: "Só nos faltam os heróis"

Este artigo tem mais de 5 anos

É quem mais se mexe para o circuito mundial de surf passar em Peniche. "Não conheço outro desporto em que se possa tocar, falar e treinar com os atletas", diz Francisco Spínola, representante da WSL.

Francisco Spínola reuniu apoios e parceiros para, em 2009, convencer a Rip Curl a organizar a uma etapa do circuito mundial de surf em Peniche. A partir daí nunca mais largou a organização do evento
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Francisco Spínola reuniu apoios e parceiros para, em 2009, convencer a Rip Curl a organizar a uma etapa do circuito mundial de surf em Peniche. A partir daí nunca mais largou a organização do evento

Francisco Spínola reuniu apoios e parceiros para, em 2009, convencer a Rip Curl a organizar a uma etapa do circuito mundial de surf em Peniche. A partir daí nunca mais largou a organização do evento

Não é preciso trocar mais de dois dedos de conversa para se perceber que Francisco Spínola é mesmo assim. Farta-se de utilizar palavras e expressões em inglês, mistura-as com o português. Saem-lhe de forma automática, sem pensar, dão a melhor pista possível para se compreender que temos à frente alguém que passa a vida a negociar e no tu-cá-tu-lá com gente de fora. Só podia: Francisco é o representante da World Surf League (WSL) em Portugal e cabe-lhe a ele coordenar tudo para que Peniche seja uma paragem no circuito mundial de surf. Já o é desde 2009, desde que se pôs a falar com marcas, arranjou patrocinadores, convenceu a câmara municipal e juntou tudo num dossier para ir a Bali, na Indonésia, convencer quem devia para trazer à praia de Supertubos os melhores surfistas do mundo. Deu resultado e isso também se nota a léguas em Peniche.

A cidade e arredores, como o Baleal, estão hoje cheias de hotéis, surfcamps, hostels, escolas de surf, lojas viradas para esta modalidade e de uma pulsação que bate forte pelas ondas. A conversa com Francisco acontece num dia em que o Moche Rip Curl Pro está parado, à espera das ondas que apareceram esta sexta-feira, e Spínola repete, uma e outra vez, que conseguir um quarto de hotel em Peniche durante o evento, é mentira — mesmo que hoje já se vejam hotéis em todo o lado. Estamos no último andar do MH, o maior deles, inaugurado em junho e cujos 120 quartos estão à pinha. Isto não é publicidade, é prova de que o representante da WSL tem razão: “Quando vejo os números do Rali de Portugal ou de eventos que andam para aí, são inacreditáveis. Mas venham cá e tentem marcar um quarto na semana em que o campeonato está a decorrer, aí é que são os números reais. Não consegues reservar nada”. É a magia do surf.

A tal que, diz Francisco, chega a atrair 30 mil pessoas de uma vez à praia de Supertubos e perto de 130 mil, no total, ao longo do evento que vai na sétima edição. Investimento não falta, há marcas sempre interessadas em patrocinar o evento, a economia local enche a barriga com a prova e os surfistas gostam de parar em Peniche. O que falta, então? Heróis. “Tivemos durante muitos anos o Tiago Pires lá sozinho no meio, um guerreiro, a lutar sempre. Agora esse campeão está fora do world tour e precisamos urgentemente de um português no circuito”, defende, lembrando os sete anos que Saca passou, sozinho, a dar voltas ao mundo entre a elite do surf.

Como é que uma etapa do circuito mundial de surf veio parar a Peniche?

Eu trabalhava para a Rip Curl, na altura, e essa prova ainda era uma floating license, uma licença que todos os anos mudava de sítio. Eu fazia o marketing da Rip Curl cá em Portugal e candidatei-me a receber o evento. Mas para isso claro que tive de me reunir com os apoios do Turismo de Portugal, da Câmara Municipal de Peniche e da então TMN. Já tinha um pacote razoável e um fundo disponível para me candidatar. Claro que enviei fotografias, vídeos e imagens da praia dos Supertubos, a onda tinha condições para receber o Search [uma prova rotativa que entretanto já não existe], era um local que poucos conheciam. Era mais a Ericeira. Fui a Bali com um dossier e apresentei a candidatura ao CEO do marketing da Rip Curl. E pronto, os gajos gostaram, havia investimento e vieram para cá.

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Acabou por correr bem então.

Pois, em 2009 correu tão bem que os principais patrocinadores quiseram continuar. Perguntaram se dava. Na altura só havia duas licenças para a Europa e Mundaka [no País Basco] era sempre um vai-não-vai. O backup spot deles era Bakio, que era muito mau, e há dois anos consecutivos que não dava nada. Os surfistas e a própria Association of Surfing Professionals (ASP), na altura, acharam que Portugal era uma opção mais viável para ter uma licença do WCT, cujo lema é “the world’s best surfers on the world’s best waves”. E assim foi.

Foi difícil chegar a um acordo?

Só foi difícil o primeiro ano. Quando íamos às marcas e dizíamos que íamos pôr 20 ou 30 mil pessoas na praia, ainda por cima em outubro, que é fora de época, desconfiavam. Mas hoje em dia não consegues marcar um quarto de hotel nesta altura, está tudo cheio. Quando vejo os números do Rali de Portugal ou de eventos que andam para aí, são inacreditáveis. Venham cá e tentem marcar um quarto na semana em que o campeonato está a decorrer, aí é que são os números reais. Não consegues reservar nada.

Ou seja, a partir do primeiro ano tudo ficou mais fácil?

A partir daí foi um sucesso atrás de sucesso, em termos de ondas, público e visibilidade nos media. E temos tido cada vez mais patrocinadores. A etapa tem vindo a consolidar-se. Os prize moneys, o broadcast e a profissionalização do surf cresceram muito e isso trouxe um aumento de investimento. Depois, e em boa hora, Cascais também entrou na onda, por assim dizer, e elegeu o surf como um dos eixos estratégicos para a câmara e entraram com muita força. Permitiram criar um QS [etapa do circuito de qualificação] de 10.000 pontos, um Championship Tour (CT) de mulheres e ainda o Portuguese Wave Series, um troféu que, em conjunto com outra prova nos Açores, torna Portugal numa das pernas mais importantes do circuito mundial de surf. Agora sim, podemos dizer que a estratégia está consolidada.

Sendo assim, o que falta melhorar?

O footprint [a pegada] das infraestruturas, por exemplo. Temos que o reduzir. Um evento desta dimensão deixa sempre algumas marcas na praia e tentamos sempre que a estrutura do evento fique assente em estacas, em vez de ficar nas dunas. Depois, tentamos sempre reflorestar as dunas e colocamos barreiras para as pessoas não irem para lá. Basicamente, as melhorias a fazer serão sempre a esse nível. E também a nível tecnológico, para a transmissão televisiva. Temos 11 câmaras e super slow motions, drones… Estamos muito fortes e temos evoluído muito neste lado não visível, para melhorar a experiência de quem está em casa a ver a prova.

Que são cada vez mais, não é?

Por mais pessoas que tenhamos na praia, até podem ser mais de 30 mil, não se comparam aos cerca de 15 milhões de pageviews que temos no site oficial da WSL. Por isso é que temos de fazer um bom produto. Os que nos vêm visitar é ótimo, mas são uma clara minoria, não é preciso inventar muito, as pessoas vêm cá para ver o surf.

O que foi mais difícil de organizar este ano?

As infraestruturas, sem dúvida. Passam aqui, ao todo, umas 120, 130 mil pessoas, e isto não é um estádio. As praias não foram feitas para receberem milhares de pessoas e é sempre um desafio conseguir colocar esta massa de gente na areia, enquanto tentamos também preservar o ambiente.

O estacionamento é sempre uma carga de trabalhos, não é?

Sempre. Nós aconselhamos sempre as pessoas a estacionarem perto da cidade e virem a pé pela praia, que é o que a maioria faz. Porque rapidamente os lugares de estacionamento na praia ficam ocupados.

Quando custa organizar um evento destes?

Em média, as provas do circuito custam entre 2,5 milhões e 3 milhões de dólares [entre os 2,2 e os 2,7 milhões de euros]. Aqui em Portugal, só em despesas locais, gasta-se cerca de um milhão e meio. O resto vai para despesas internacionais, como o transporte, equipamento ou outsourcing. No cômputo geral do Portuguese Wave Series [SATA Açores Pro, Allianz Billabong Cascais Pro e Moche Rip Curl Pro, em Peniche] estamos a falar entre os 3 e os 3,5 milhões de euros.

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Na primeira vez que participou na etapa portuguesa, Vasco Ribeiro conseguiu passar à terceira ronda. © WSL/ Poullenot / Aquashot

E o lucro que isto reverte?

Isso acaba por ser mais ao nível da promoção que temos. O ano passado acho que foram 28 milhões só cá em Portugal. Depois há todo o impacto mediático, que as marcas que investem no evento procuram. O mundo do surf para, literalmente, para ver esta prova. Só existem 10 ao longo do ano. Por isso é que este evento corta a sazonalidade, o surf é exatamente ao contrário. É fácil fazer eventos no verão, quando as praias estão cheias. Era só ir ao Algarve fazer um evento e dar animação àquilo. Aqui não. Houve um boom e por isso é que somos aqui recebidos de braços abertos pela população, pois sentem o quanto o surf desenvolveu a economia local.

Mas se não houvesse um calendário competitivo por cumprir na WSL, escolherias fazer esta etapa noutra altura do ano?

Não, esta altura é perfeita. Mas a nossa janela [de tempo] em Portugal é claramente desde meados de outubro até meados de março. É o ideal em termos de ondas. Ou seja, estamos a investir num evento que traz pessoas para uma região que, nesta altura, estaria sempre vazia ou com hotéis fechados. E hoje somos obrigados a pôr pessoas em Torres Vedras, porque não há quartos disponíveis aqui perto de Peniche.

Dito isto tudo, os portugueses em geral já dão valor ao surf?

Acho que sim e isso vê-se bem. Não temos haters nem malta constantemente a dizer mal do surf, como em outros desportos. E atenção, vejo muito outras modalidades e adoro outros desportos. Gosto de tudo. Mas sentimos claramente que o surf não tem anticorpos, as pessoas percebem que os investimentos estão a ter retorno. Claro que há sempre um ou outro que está mal com a vida e diz mal de tudo, mas a esmagadora maioria diz bem.

Não é como no futebol.

Pois, aqui não. Os resultados são tão visíveis que ninguém questiona, além de que estamos a falar de investimentos muito, mas mesmo muito, inferiores. E o investimento público é muito menor que o privado. O público ajuda, dá as bases, mas o privado é que põe as coisas a andar, como eu acredito que deve ser. Por isso é que isto tem corrido bem. Acho que o mar e o surf em particular são coisas muito transversais, não se fala se é uma aposta de um partido político ou de outro. Claro que trabalhamos com as câmaras, juntamos uma CDU com uma PSD, começámos com um governo PS e agora passámos para este… O retorno é sempre grande e há muita coisa que está em jogo.

A criação da WSL [World Surf League, que substituiu em 2015 a Association of Surfing Professionals] também ajudou, certo?

Claro, aproveitámos o flow da WSL, que se está a profissionalizar de forma galopante. A organização tem aumentado a audiência em cerca de 200%, a cada etapa do circuito. É brutal. Sendo que no evento da África do Sul disparou por causa daquele incidente com o Mick Fanning.

E, sobretudo, os surfistas gostam de vir cá, pelo que se ouve.

Adoram! E as pessoas também. A proximidade entre atletas e público é enorme. Não conheço mais nenhum desporto em que os atletas passem pelos adeptos e eles possam tocar neles, falar com eles e até ir surfar com eles. Ninguém vai treinar com o Messi, o Cristiano, o Nadal ou o Federer. Não podem. Aqui, se fores ali à [praia da] Almagreira num dia sem competição podes surfar com todos eles. Falo com entusiasmo sobre isto porque sou surfista desde sempre e gosto mesmo disto, mas acredito que o surf em Portugal vai mesmo crescer brutalmente. É um estilo de vida saudável e desenvolve não só a economia local, como a vinda de turistas para cá.

Algum dia a prova sairá de Portugal?

Não há razões para que isso aconteça. Enquanto houver este investimento local e as marcas nacionais continuarem interessadas em cobrir parte dos custos, o restante vem da World Surf League, que acredita que isto é um granda spot para fazer o evento. Claro que o investimento é sempre necessário, mas o que trouxe para cá isto foram as ondas e desde que elas não se ponham aí a inventar, à partida nunca ninguém vai conseguir estragar isto.

Hoje já não existem licenças para organizar eventos. Como é que isto se faz então? Há um acordo com a WSL para organizar a prova durante x anos?

Antigamente comprávamos a licença à antiga ASP e operávamos o evento durante três anos. Neste momento fizemos uma parceria com a WSL e todos os anos apresentamos uma previsão do que achamos que vamos conseguir em termos financeiros. Eles dão-nos uns targets e nós vamos às marcas e às entidades públicas para cobrir as despesas locais. Basicamente é assim que funciona. Agora, como estamos inseridos num tour, um circuito mundial, se houvesse algum problema financeiro repentino, o evento não cairia nem era cancelado. Se deixasse de ser rentável financeiramente, claro que teria impacto. Mas acho que isso não vai acontecer, há cada vez mais marcas que nos vêm falar para participarem nisto.

Já têm que deixar algumas de fora?

Sim, algumas não entram. Porque temos espaços para colocação de marcas que não chegam para todas. Depois estamos blindados pelo apoio das câmaras de Peniche e Cascais, que tiveram uma visão comum, mesmo com cores políticas diferentes, que nos deram uma grande segurança. Neste momento somos a prova europeia mais forte. Escolhemos as datas das nossas competições primeiro que os franceses e os espanhóis. Onde é que isto acontece na economia? É no surf que somos o número um na Europa.

Falta que um campeão mundial seja decidido aqui?

Não, faltam os atletas. Tivemos durante muitos anos o Tiago Pires lá sozinho no meio, um guerreiro, a lutar sempre. Agora esse campeão está fora do world tour e precisamos urgentemente de um português no circuito. Temos esta nova fornada a bater à porta, o Vasco [Ribeiro], o Kikas [Frederico Morais], o Zé [Ferreira], o Tomás [Fernandes], o Nic Von Rupp… É nestes que se tem de apostar.

E convém que entrem todos ao mesmo tempo. O Tiago Pires uma vez disse-me que sentia uma grande pressão cada vez que vinha surfar a Portugal.

Era gigante, claro. Hoje está mais calmo e descontraído. Mas é questão dos atletas, dos heróis. Este ano estive no Brasil, a ver a etapa do Rio de Janeiro, e como eles agora têm a Brazilian Storm, com tantos atletas no top-10 do ranking, aquilo era uma loucura. A prova teve diretos na Globo, para não sei quantos milhões de brasileiros, a praia chegou a estar com cerca de 150 mil pessoas num dia, foi uma loucura, nunca tinha visto isto em lado nenhum. Porquê? Porque há heróis e as pessoas precisam deles. Dos atletas. E quando tivermos lá os nossos isto vai ser diferente. Ainda hoje se nota um bocado com o Tiago, apesar de já não estar no circuito e na corrida pelos pontos. Mas é, de longe, o melhor surfista português de todos os tempos.

SURF,

O do meio (Tiago Pires) esteve sete anos no circuito mundial sozinho e os outros (Vasco Ribeiro e Frederico Morais) são dois dos que lutam por lá entrar. Foto: José Sena Goulão

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