O passe não era dos bons. Foi mau, mesmo, vindo das mãos de quem não olhou e o julgava mais longe no campo. Por isso a bola ultrapassou-o, passou-lhe por cima e pôs-se a ressaltar na relva, perdida nas indecisões de ser oval. Mas ele reagiu rápido. Virou-se e mudou logo de direção, sem nunca parar de correr. Agarrou a bola e encostou-a ao peito com a mão esquerda, deixando a direita livre para afastar quem sabia que aí vinha. Quando se virou para a área de ensaio, já dois ingleses o tinham na mira. Esquivou-se do primeiro e acelerou, em frente, para fugir ao segundo. Conseguiu, mas não foi perfeito: o adversário voou, esticou um braço e tentou ceifar-lhe uma das pernas. Foi o suficiente para abrandar o neozelandês, deixá-lo a cambalear, tronco encostado aos joelhos, e a dar sinais de estar prestes a espalhar-se na relva.
Já só tinha um inglês entre ele e a linha de ensaio. Vendo-o quase a cair, Mike Catt terá sorrido por dentro. Fletiu os joelhos, colocou-se quase de cócoras e na posição que se pede a quem quer placar baixinho, às pernas. Mas nem a posição prudente do inglês ou a corrida aos soluços de Jonah Lomu fizeram com que o homem vestido de preto parasse. O neozelandês abalroou o inglês, como se nada fosse, e continuou a cambalear até colocar a bola no chão e dar cinco pontos aos All Blacks. Atropelou Mike Catt e passou-lhe por cima, literalmente. Era o quarto ensaio que Jonah Lomu marcava pela Nova Zelândia e não é nenhum dos outros 36 que toda a gente se recorda. É deste, do que marcou à Inglaterra com 20 anos, nas meias-finais do Mundial de 1995.
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Quem gostava de râguebi pasmava-se, não entendia como um homem quase a cair atropelava outro cheio de força para o placar. Como alguém preferia usar o peso do corpo para correr contra os adversários em vez de puxar da agilidade para fugir deles. Como era possível um matulão de 1,95 metros e 120 quilos dar corda suficiente às pernas para chegar a fazer os 100 metros em menos 11 segundos. O físico, era sobretudo isso que impressionava em Jonah Lomu. E foi o físico, o corpo, a causar impressão por apenas o deixar viver até aos 40 anos. Até à madrugada desta terça-feira, quando ainda era manhã na Nova Zelândia e o antigo jogador não acordou no dia seguinte a regressar de Inglaterra, onde estava desde o início do Campeonato do Mundo que os All Blacks venceram.
Por lá andou durante quase dois meses, a acompanhar a seleção dos que vestem sempre de negro. Comentava os jogos, dava opiniões, incentivava-os e puxava por eles enquanto andava de um lado para o outro, a servir de embaixador da Heineken para o torneio. Ao mesmo tempo fez “uma tour pelas unidades de diálise” dos hospitais ingleses. “Quando acabar [o Mundial] já conhecerei os cantos de todas as clínicas do país”, diz, quando o The Daily Telegraph o entrevista uns meses antes.
Porque havia algo em que Jonah Lomu sabia que o dia seguinte ia ser igual ao anterior — nas seis horas que tinha de estar ligado a uma máquina que lhe limpasse o sangue. Uma tarefa que o corpo há muito já não conseguia fazer. Há quatro anos que o neozelandês passava 25% do tempo de cada dia assim. “Yeah, chegas a um ponto que não há mais filmes para ver, mais e-mails para ver. Mas não vou deixar que isso me deite abaixo. Toda a gente tem altos e baixos. Para mim, acordar não é uma tarefa”, desabafa, sobre a partida que o corpo lhe voltou a pregar em 2011.
O corpo rejeitou o rim que Lomu lhe dera, cinco anos antes, para o calar. Nem assim o convenceu a dar algum descanso ao neozelandês, a quem fora diagnosticada Síndrome Nefrótica, que elimina quantidades anormais de proteína na urina. Os rins viram-se contra Jonah em 1996, mas ele não virou as costas ao râguebi. A doença surge meses depois de se apresentar ao râguebi, na África do Sul. Os neozelandeses arriscam e decidem levar ao Mundial de 1995 um miúdo que nem dez jogos tinha feito como ponta, na posição que encosta os mais rápidos às laterais do campo para correrem desenfreados quando a bola lhes chega às mãos. Porque até aí o corpo, o peso, a altura e o estilo faziam-no jogar a avançado, onde os grandes, maus e corpulentos sempre estavam até o râguebi perder o cliché de “tens este corpo, jogas nesta posição”. Ou até Jonah Lomu dar cabo dele: marcou dois ensaios à Irlanda e um à Escócia antes de conseguir quatro contra a Inglaterra, nas meias-finais.
Quem era este?
Era um miúdo que começara a jogar à ponta porque não havia mais ninguém e por estar habituado a correr nos sevens, o râguebi jogado com sete contra sete. “Era segunda linha, jogava a avançado, até que os nossos pontas se lesionaram. Como já tinha jogado sevens, o treinador disse: ‘Hey, Jonah, vamos colar-te à ponta. E marquei quatro ensaios. Quando dei por mim estava a estrear-me pelos All Blacks contra a França na preparação para o Campeonato do Mundo. Até aí só tinha jogado cinco vezes nessa posição”, recorda. Daí até a Nova Zelândia chegar à África do Sul não deu tempo para o mundo do râguebi o conhecer, em parte também pelos chumbos que chegou a ter nos primeiros testes físicos que realizou na seleção. Não estava em forma, diziam. “Em termos de peso, acho que ainda seria hoje em dia o maior ponta no râguebi internacional”, suspeitou, em agosto.
Em 1995 chegou à final do Mundial e tudo o que não era neozelandês se preocupava com ele. A arrelia foi tanta que chegou a constar em “Invictus” (2009), filme que narra a história de como Nelson Mandela viu no râguebi uma hipótese de curar uma nação ferida por uma divisão de cor e racismo. “Não me arrependo de nada. Estive na final em que um país se tornou num só. Como desportista, claro que estava desesperado por ganhar, teria dado o meu braço direito para ficar com o troféu. Mas com o passar do tempo, as pessoas recordam-se de como o râguebi ajudou a mudar uma nação. E isso não teria acontecido se tivéssemos ganhado”, explicou, sobre a competição na qual pontificou. Até ao final desse ano, Lomu marcou 15 ensaios pela Nova Zelândia.
Depois veio a doença, as dúvidas, o corpo a ceder e um ano quase sem jogar. A forma fugia-lhe e os adversários iam arranjando maneiras de o contrariar, chutando-lhe bolas para as costas e obrigando-o a rodopiar quando o que fazia melhor era correr em frente. Chegou a tremer ao Mundial de 1999, mas conseguiu atropelar homens que não pareciam ser feitos para o mesmo desporto que ele. Volta a não conquistar a prova, embora marque oito ensaios e fique com 15 em Campeonatos do Mundo, um recorde que o sul-africano Bryan Habana apenas consegue igualar em 2015. Era o segundo Mundial consecutivo em que o monstro com corpo de avançado fazia coisas que nenhum outro ponta conseguia. O râguebi ganhava uma estrela e até quem não seguia o mundo oval passava a conhecer Jonah Lomu. E ele passava a conhecer ainda mais a doença.
O corpo passou a recordá-lo mais vezes que não era saudável. Começou a deixar de ser tão rápido, a não conseguir abalroar os outros e a sentir os rins a quererem atropelá-lo. “Quando tinha feridas eles simplesmente infetavam. E sentia-me sempre tão cansado. Quando os rapazes, depois dos jogos, iam socializar, eu tinha de ir para o quarto do hotel comer”, descreveu, ao falar dos tempos em que o corpo tanto insistiu que, em 2003, resolveu parar. Tinha 28 anos e, em 2004, recebeu o transplante de rim que convenceu o corpo até a deixá-lo tentar regressar ao râguebi. Passou anos a tentar em vários clubes neozelandeses e até na Europa, mas nunca teve sucesso. Eram os rins a parar o homem que poucos no râguebi lograram placar sozinhos.
Aprendeu a lidar com a doença e deixou-a ensinar-lhe coisas. Passou a viajar mais, a dar palestras e a falar sobre maneiras de fintar os problemas e vez de passar por cima deles, como fazia com a bola oval na mão. A primeira estrela global do râguebi foi-se tornando num embaixador da modalidade. Agarrou-se aos dois filhos, hoje com quatro e seis anos, mas nunca tirou os olhos do râguebi. Porque o desporto também nunca esteve perto de esquecer quem deu músculo a uma era em que se pensava mais na agilidade e em manter os estereótipos de cada posição. O neozelandês foi diferente e o sucesso que teve obrigou o râguebi a mudar: “As pessoas dizem-me que a meia-final contra a Inglaterra [em 1995] foi o melhor jogo que fiz. Eu digo que sim. Mas imaginem o que eu poderia ter feito se fosse saudável“. É difícil imaginar maior pegada, Jonah Lomu.