Em 1965, Gregory Peck quis interpretar num filme a figura do advogado James B. Donovan, que alguns anos antes tinha sido um dos homens mais impopulares dos EUA, para depois se tornar num dos mais admirados. Em 1957, Donovan tinha sido escolhido para defender o espião do KGB Rudolf Abel, capturado em Nova Iorque. E em vez de ter assegurado uma defesa de circunstância, já que a sorte de Abel — pena de morte — parecia estar decidida de antemão, Donovan puxou pelos galões e pela Constituição e conseguiu levar o caso até ao Supremo Tribunal. Perdeu, mas Abel foi condenado a 30 anos de cadeia em vez de ir aterrar na cadeira eléctrica. Em 1962, o mesmo Donovan negociou em Berlim a troca de Abel por Gary Powers, o piloto do avião-espião U2 abatido sobre a URSS, e por Frederic Pryor, um incauto estudante americano detido pela polícia da RDA.

[O verdadeiro Rudolf Abel]

Peck não conseguiu levar avante o seu projecto, onde Alec Guinness personificaria Rudof Abel contra o seu Donovan, porque a MGM achou que o momento político internacional não era o mais propício. Afinal, estava-se em plena Guerra Fria. Cinquenta anos mais tarde, a Guerra Fria e o mundo bipolarizado em que foi travada são uma recordação cada vez mais distante, a História deu muitas voltas e os filmes agora falam sobre o terrorismo islâmico omnipresente, os malefícios da mundialização, os perigos do securitarismo via Internet e os seus denunciantes. Mas isso não impediu Steven Spielberg de ir resgatar a história de Donovan em “A Ponte dos Espiões”, onde trabalha pela primeira vez com os irmãos Joel e Ethan Coen, autores do argumento, sobre uma primeira versão da autoria de Matt Charman.

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[“Trailer” de “A Ponte dos Espiões”]

Percebe-se perfeitamente o que interessou Spielberg nesta história. Foi a figura de Donovan, que com a sua ética inabalável, a sua confiança plena nos valores da democracia e da liberdade tal como a lei fundamental dos EUA os define e garante (mesmo a um espião comunista em plena vertigem do “Perigo Vermelho”), o seu individualismo antes-quebrar-que-torcer e o seu idealismo modelar, é uma figura saída de um filme de Frank Capra, um Mr. Smith para a era da Guerra Fria. E como James Stewart, Henry Fonda ou o citado Gregory Peck, intérpretes consumados de “referências morais” no cinema americano, já não estão disponíveis, o realizador foi buscar o mais legítimo herdeiro destes, o seu amigo e habitual parceiro Tom Hanks.

E ainda bem, porque sem o jeito terra-a-terra de Hanks, a sua figura de regular guy e o seu talento para debitar discursos edificantes e dizer coisa sérias como se estivesse a trocar amenidades com a família ou os amigos, James Donovan ter-se-ia transformado de personagem verosímil e simpática, em pesado e irritante símbolo da virtude americana. Mesmo assim, este Donovan de Tom Hanks está muito idealizado. O filme mostra-o como totalmente virgem nos meandros e procedimentos do mundo da espionagem, quando o verdadeiro James Donovan havia trabalhado para a OSS, a antecessora da CIA, durante a II Guerra Mundial, sabia como as coisas funcionavam e tinha muitos contactos nesse meio. E “Ponte dos Espiões” não está livre de outras simplificações e omissões como esta.

[Entrevista com Tom Hanks]

A grande revelação de “A Ponte dos Espiões” é o inglês Mark Rylance, no papel do coronel Rudolf Abel. Rylance é um dos maiores actores britânicos de hoje, mas faz mais teatro e televisão do que cinema e é por isso pouco conhecido fora da Grã-Bretanha. Logo que o vemos na abertura do filme, mergulhado no seu “hobby”, a pintura, e a fazer o seu auto-retrato (além de ser uma piscadela de olho a um quadro de Norman Rockwell, um dos pintores favoritos de Steven Spielberg, a cena é também uma metáfora para o mundo dos espiões, com a sua multiplicação de identidades), percebemos que estamos na presença de alguém que domina totalmente, e sem o exibir, a sua arte.

O Abel de Rylance é como que o Droopy da espionagem, um homem de uma impassibilidade olímpica, verbo poupado e lealdade férrea, que os americanos não conseguem “virar”, e cuja calma críptica colide com a agitação virtuosa e transparente do Donovan de Hanks, e cuja personalidade temos que decifrar a partir dos pouquíssimos indícios que o actor nos dá dele. É uma interpretação brilhante, toda ela ocultação, sugestão e reserva emocional, e o argumento dos Coen fornece ao imperturbável coronel do KGB uma frase que se transforma no refrão particular da personagem e resume a sua atitude ante os acontecimentos, mesmo até à sequência da troca de prisioneiros na emblemática Ponte Glienicke, em Berlim, a “Ponte dos Espiões” do título, onde americanos e soviéticos fizeram várias trocas destas ao longo da Guerra Fria.

[Entrevista com Mark Rylance]

Naturalmente, “A Ponte dos Espiões” abraça várias das tipificações e das convenções narrativas e visuais consagradas pelos thrillers de Guerra Fria, embora o argumento — ou não tivesse sido escrito pelos Coen — também arranje espaço para acomodar algum humor enviesado (a arreliadora constipação de Donovan após o roubo do seu caríssimo sobretudo em Berlim Leste, a cena patusca da falsa família de Abel na embaixada da URSS) e inclua algumas pinceladas de cinismo e desencanto que acenam na direcção de John Le Carré.

[Nos bastidores da rodagem]

Trabalhando com outro colaborador habitual, o director de fotografia polaco Janusz Kaminski, Steven Spielberg foi a Berlim e à Polónia rodar as sequências alemãs do filme e reconstituir o clima de confusão, tensão e medo dos dias da construção do Muro de Berlim, que James Donovan viveu durante a sua missão, e que enfatizam o dramatismo e a urgência dos bastidores das negociações, entre avanços e recuos, confiança e desconfiança, jogos psicológicos, birras da RDA e braços de ferro diplomáticos. Tudo envolvido pelo realizador no negrume e na neve do Inverno berlinense, entre tanques, soldados, arame farpado e civis em aflição, e sob a ameaça do muro que se erguia.

[Entrevista com Steven Spielberg]

São horas em brasa da Guerra Fria que o Donovan de Tom Hanks enfrenta com o nariz sempre a pingar e a sonhar com a cama da sua casa em Nova Iorque. E que “A Ponte dos Espiões” revive como se nos tivessemos metido numa máquina no tempo e recuado a essa era em que amigos e inimigos estavam claramente definidos e reconhecidos, e as duas superpotências trocavam prisioneiros numa ponte, algures numa Berlim cercada e cortada ao meio.

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