“De acordo com a experiência do staff do Fundo Monetário Internacional (FMI), as reformas da justiça levadas a cabo pelas autoridades portuguesas deverão estar entre as mais bem sucedidas neste setor”. Não poupando nas palavras, este é apenas um dos rasgados elogios que os técnicos do FMI fazem às reformas do governo Passos Coelho na área da Justiça num relatório distribuído no final de 2015 e assinado por Sebastian Pompe e Wolfgang Bergthaler, dois especialistas do Fundo em reformas estruturais no setor da Justiça.

É certo que os autores do relatório do FMI avisam também que ainda é cedo para avaliar de forma definitiva os resultados globais das reformas, sendo certo também que o relatório não vincula formalmente o Fundo, mas fazem questão de enfatizar os resultados positivos que já foram alcançados.

Concentrando-se nas reformas da organização judiciária (mais conhecida como o novo mapa judiciário), do Código de Processo Civil e na nova lei de insolvências e penhoras, os dois técnicos do FMI valorizaram os seguintes dados:

  • Mais de 500 mil processos de execução pendentes foram fechados até junho de 2014 – o que representa 45% de todos os processos de execução pendentes desde maio de 2011;
  • A taxa de resolução de processos subiu para 158%, fazendo de Portugal um dos países europeus com melhor performance. Desde o início das reformas (4.º trimestre de 2012), a taxa de resolução ultrapassou de forma regular os 100%. Isto é, foram concluídos mais processos do que aqueles que entraram;
  • A entrada de processos de execução desceu de 450.792 (2008) para 206.981 (2014) em virtude das medidas implementadas para baixar o grau de litigância;
  • Antes das reformas, os tribunais demoravam mais de 1.500 dias para concluir um processo (independentemente da área de direito) – com a exceção de dois meses em 2008. Desde janeiro de 2013, os processos são resolvidos abaixo dos 1.500 dias, sendo que em vários meses alcançaram-se mesmo resultados médios entre os 500 e os mil dias;
  • Desde setembro de 2013 que foram iniciados cerca de 1,7 milhões de processos de penhora com 125.000 operações de penhora efetuadas e 337 milhões de euros recuperados – valor este que representa cerca de 0,2% do PIB. Só para percebermos a evolução, basta recordar que entre 2003 e 2013 apenas foram recuperados com o anterior regime de execuções cerca de 20 milhões de euros.

Os resultados alcançados deveram-se, segundo o FMI, ao programa extraordinário de redução de pendências e aos seguintes incentivos aplicados pelo governo PSD/CDS (junho de 2011/outubro de 2015):

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. incentivando as empresas a recorrerem apenas em última instância aos tribunais;

. transferindo os custos dos contribuintes para os litigantes através do aumento das taxas de justiça; criando uma tabela única e a aumentando as custas judiciais,

. simplificação do processo cível através da redução de atos jurisdicionais e da limitação do número de testemunhas, por exemplo; e criação de um procedimento pré-judicial no processo de insolvência que permite ao credor perceber se o devedor tem meios financeiros e património que lhe permita pagar a dívida.

. nova organização judiciária que permitiu reduzir e concentrar distritos judiciais e tribunais, aumento da especialização dos tribunais e o novo Código de Processo Civil

O FMI entende que, apesar do contributo dos técnicos do próprio Fundo e da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu, os resultados das reformas se deveram às autoridades portuguesas. “Não há dúvida que os esforços das reformas foram uma conquista portuguesa”, nomeadamente devido a uma “estratégia abrangente”, “preparação”, “capacidade”, “cooperação com os agentes judiciários” e com os “técnicos das instituições da troika” e “capacidade de liderança” demonstradas pelo governo português, representado pela ministra Paula Teixeira da Cruz.

Os técnicos do FMI, por outro lado, não deixam de apresentar as suas críticas, com destaque para o crash (Citius)do sistema informático dos tribunais ocorrido aquando da entrada em vigor do novo mapa judiciário em setembro de 2013, situação que provocou “uma paralisação temporária do sistema, que continuou por um longo período de tempo”. Contudo, os autores do relatório dizem que devido “à persistência das autoridades estas questões foram largamente ultrapassadas”.

Surpreendentemente, os autores do relatório mostram compreensão para o facto de a redução de tribunais não ter sido tão ambiciosa como a troika gostaria, dando mesmo esse caso como um exemplo de “compromissos realistas que eram necessários”.

Aviso ao governo PS

No relatório do FMI podem ser lidos também alguns avisos para o futuro que terão de ser analisados pela nova ministra Francisca Van Dunem. “Não podemos dizer que o sistema ficou perfeito – se é que existe tal coisa numa reforma judiciária que procura sempre a melhoria do sistema. [Contudo,] As reformas mostraram um impressionante progresso a curto e a médio prazo” e outras,”apenas darão resultados a longo prazo”, lê-se no documento.

Os técnicos do FMI fazem questão de enfatizar o seguinte:

Os efeitos de algumas das reformas-chave, como a nova estrutura de gestão do sistema judicial e a análise do desempenho dos tribunais, ainda não foram sentidos e qualquer falha em levar avante estas medidas pode enfraquecer a reforma como um todo”.“O lado institucional da reforma ainda está num estágio inicial e apela a um envolvimento sustentado das autoridades, tanto a nível político como operacional“, enfatizam os técnicos do FMI, à atenção do novo governo do PS e a sua vontade em reverter algumas das reformas levadas a cabo, nomeadamente a algumas medidas do novo mapa judiciário.

O sistema de cobrança de dívidas, entendem os técnicos do FMI, necessita de ser mais eficaz, devendo igualmente ser reforçada a fiscalização dos oficiais de execução – isto, apesar de ter ocorrido um “progresso significativo” nesta área com as reformas implementadas. Também a área de reestruturação de dívidas e insolvências deve continuar a ter a atenção do governo no sentido de se aperfeiçoarem os mecanismos implementados. Por outro lado, a Justiça Tributária continua a operar fora da nova organização judicial e do sistema informático da Justiça “e devia ser integrada de forma expedita”, aconselham.

O diagnóstico que precedeu as reformas

No relatório do FMI está bem espelhado o diagnóstico que esteve na origem das reformas levadas a cabo pelo governo PSD/CDS:

  • Portugal é o país mais lento da União Europeia (UE) em termos de número de dias necessários para concluir um processo de execução ou queixas na área do direito comercial: mais de 800 dias (dados de 2010);
  • Mais de 80% das empresas portuguesas pagam foram dos prazos acordados – é a segunda percentagem mais elevada da UE (dados de 2013);
  • Portugal é o terceiro país europeu com maior risco em termos pagamentos, sendo que o Estado português é o quarto com pior performance em termos de prazo de pagamento: mais de 120 dias (dados de 2013)
  • Número de processos de execução pendentes subiram todos os anos desde 1993 (135.766 pendências) até 2011 (1.208.842 pendências)
  • Entre 1991 e 2009, apenas em dois anos (2006 e 2007) a taxa de resolução de processos ultrapassou os 100%. Isto é, só nesses dois anos é que foram concluídos mais processos do que aqueles entraram.
  • O número de processos pendentes subiu de 600 mil (1991) para cerca de 1,6 milhões (2009). Apenas em 1994, 2006, 2007 e 2008 foi possível reduzir esse número

Estes dados, segundo o FMI, faz com que as empresas portuguesas tenham desafios constantes em termos de liquidez e que muitas delas terminem mesmo em processos de insolvência por não terem capacidade financeira para aguentar prazos tão dilatados. “A prevalência de práticas de pagamentos atrasados tem um efeito acelerador do desemprego”, enfatizam mesmo os técnicos do Fundo sedeado em Washington.

“Desde há muito que está provada a importância e o contributo para o crescimento económico de um eficiente sistema de direito de propriedade e efetivos processos de execução e queixas comerciais. Tradicionalmente, a importância da relação desses fatores é definida pela capacidade que um país tem em ter acesso aos mercados de capitais internacionais – o que se traduz em investimento direto internacional”, afirmam os técnicos do FMI.

Por isso mesmo, o relatório destaca a pouca capacidade que Portugal tem demonstrado nos últimos anos para atrair investimento estrangeiro – principalmente quando o nosso país é comparado com países como Espanha e França. Além dos custos salariais e das leis laborais rígidas, também “o lento sistema de justiça civil e comercial” contribuiu, no entendimento dos técnicos do FMI, para esses fracos resultados na captação de capitais essenciais para o desenvolvimento da economia face à descapitalização das empresas e dos bancos portugueses.