O papel já está amarelo, mas Ricardo Salgado ainda o guarda. Está assinado pelo amigo José Guilherme, o construtor civil que subiu a punho e viria, mais tarde, a dar-lhe uma prenda de milhões de euros como forma de agradecimento dos seus conselhos. As letras escritas à mão dizem “obrigado”. O papel foi levado em 2012 ao Ministério Público para esclarecer a relação de amizade entre o banqueiro e o construtor. Uma relação em banho-maria por ordem do juiz – que proibiu contactos entre os dois -, mas que merece um capítulo no livro “BES – Os dias do fim revelados”, apresentado esta quinta-feira.

Ainda não tinha 30 anos, era Diretor de Crédito e estava longe de chegar ao topo dos negócios da família, quando Ricardo Salgado conheceu José Guilherme – um self made man, que com o quarto ano de escolaridade e raízes nos arredores de Abrantes prosperava no ramo da construção civil, em Lisboa. Diz a autora do livro, Alexandra Ferreira, que a “típica relação entre banco e cliente rapidamente se tornou mais próxima”. Mais. Que Ricardo Salgado e José Guilherme “estavam longe de imaginar que (…) seriam os protagonistas de um dos episódios que mais contribuiria para o fim da paz na família Espírito Santo”.

Tudo aconteceu em 2008, quando a crise no setor imobiliário bateu à porta do empresário. Convicto de que a solução para os problemas estaria além fronteiras, José Guilherme – também conhecido por “Zé Grande” como o Observador então noticiou – foi ter com o banqueiro. Disse-lhe que se preparava para assentar arraiais na Bulgária. Naquela altura o Leste parecia “um oásis de crescimento da Europa”. Salgado demoveu-o.

–Não faça uma coisa dessas! Você vai meter-se num sarilho com gente muito complicada. Você não fala línguas, tem de ir para um país que fale a nossa, disse-lhe Ricardo Salgado, segundo o livro.

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José Guilherme aceitou o conselho. Decidiu virar-se para Angola, onde começou a ganhar milhões. Um “sucesso estrondoso”, nas palavras de Ricardo Salgado. “As portas da cúpula do Presidente José Eduardo dos Santos abrem-se ao construtor mas Ricardo Salgado nega sempre ter sido ele a abri-las e fala antes no mérito do construtor da Amadora”, lê-se.

–Ele teve um parceiro institucional que era da família do Presidente, não precisou de mim para nada, nada!, justifica Salgado.

Naquela altura, e citando os jornais, o construtor acabou por comprar um terço das Sky Towers da Escom – a sociedade que concentrava os investimentos do Grupo Espírito Santo, em Angola. Comprou por sete milhões de euros e acabaria por vender mais tarde à mesma sociedade por 34 milhões. Um negócio que Salgado diz desconhecer.

Foi nas viagens de José Guilherme a Lisboa que este informou o banqueiro a intenção de dar-lhe um presente como forma de agradecimento pelo sucesso em Angola. José Guilherme estava “rico” e sentia-se em dívida com o amigo por isso. Salgado começou por recusar. Alegou que os conselhos não se pagam. Mas o construtor terá insistido.

–Mas Sr. Dr. isto é um caso especial, eu estava completamente destruído, o meu grupo e a minha família. Hoje estou riquíssimo e quero recompensá-lo – diria o construtor.

“Uma, duas, três, quatro, cinco vezes e às tantas o homem estava de tal maneira insistente que eu chamei os advogados”, conta Ricardo Salgado. Corria o ano 2011 e Salgado aconselha-se com com os advogados para perceber como podia receber esta prenda do amigo sem parecer uma ilegalidade. Os especialistas viriam a chamar-lhe “liberalidade”, ou seja, doação. No entanto, aos olhos do Fisco, este valor teria que ser justificado como pagamento de serviços de consultoria. E foi esta a justificação que Salgado deu ao Banco de Portugal e ao Ministério Público.

“Nunca na vida recebi comissões. Foi, de facto, um ato de gratidão de um amigo para com outro amigo”, assegura Ricardo Salgado à autora, Alexandra Ferreira.

Foi assim que começaram as transferências para uma conta na Suíça gerida por um consultor da Akoya, a financeira suíça que está no centro da investigação da Operação Monte Branco. No livro, não se especifica o valor e o porquê de ter sido transferido por tranches do BES Angola para uma conta de Salgado na Suíça.

O único valor que o livro fala é o que foi então avançado pelo jornal Sol. “Demoraria quase um ano mas a vingança servia-se fria. Em setembro de 2013, o jornal Sol de Álvaro Sobrinho estava nas bancas: ‘Ricardo Salgado recebe presente de 8,4 milhões de construtor de José Guilherme’, lê-se.