O cenário repete-se dia após dia, hora após hora, sem qualquer sinal de abrandamento. Para onde quer que se olhe, as multidões de turistas parecem não ter fim. Há filas para a Torre de Belém, há filas para o Mosteiro dos Jerónimos, o Padrão dos Descobrimentos está repleto de cabeças, o novo Museu dos Coches atrai olhares curiosos e toda a zona junto ao Tejo está repleta de gente em busca do sol lisboeta. A capital portuguesa está na moda e Belém é paragem obrigatória dos roteiros internacionais. Enquanto atiram “lovely” a cada coisa que por aqui veem, os turistas ignoram a polémica em que esta zona tem estado envolvida — e cujo fim ainda não tem data marcada.

O último episódio desta história foi a demissão de António Lamas da presidência do Centro Cultural de Belém (CCB), no fim de fevereiro, pela mão do novo ministro da Cultura, João Soares. A saída de Lamas daquele equipamento rendeu-lhe uma indemnização pelos meses que ainda tinha de contrato, mas matou um projeto de que Lamas, gestor cultural desde os anos 80, era o principal mentor. O Plano Estratégico Cultural da Área de Belém morreu antes sequer de ter nascido, apelidado por João Soares como “um disparate total”.

O que continha, afinal, esse plano?

Apresentado em setembro do ano passado pelo então secretário de Estado da Cultura, o plano estratégico resultou do trabalho de uma Estrutura de Missão criada em junho, na qual o CCB (e o seu presidente) era o centro de uma constelação de monumentos e equipamentos culturais.

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À semelhança do que António Lamas já fizera em Sintra, com a colocação de dez monumentos, parques e equipamentos culturais sob a mesma gestão, a ideia do anterior Governo era criar um Distrito Cultural de Belém. O objetivo, lê-se no documento de 34 páginas que, apesar de apresentado publicamente, nunca foi oficialmente implementado no terreno, era que esse distrito fosse um “‘acelerador’ e qualificador da oferta turística de Lisboa para que esta alcance, inequivocamente, o mais que justo estatuto de destino cultural à escala global.”

Como potenciais integradores do futuro distrito, o plano identificava mais de duas dezenas de monumentos de Belém e da Ajuda, geridos por diferentes entidades. O Padrão dos Descobrimentos, por exemplo, é gerido pela Câmara Municipal de Lisboa, enquanto o Palácio da Ajuda, a Torre de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos, os museus dos Coches, de Arqueologia, de Arte Popular e de Etnologia são responsabilidade da Direção Geral do Património Cultural (DGPC). Por outro lado, o CCB é uma fundação independente, o Museu da Eletricidade é da EDP e o Museu de Marinha e o Planetário Calouste Gulbenkian são geridos pela Marinha. A intenção do anterior Governo era que a estrutura de missão criada em junho (e agora extinta) fosse uma plataforma acima de todas estas entidades, sentando-as numa mesa de aconselhamento, mas retirando-lhes alguns poderes executivos.

António Lamas foi para o CCB especificamente para desenvolver um projeto semelhante ao que já tinha feito em Sintra (Fotografia de João Relvas/LUSA)

Este foi, aliás, um dos problemas identificados pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa no plano. Fernando Medina só na semana passada quebrou um longo silêncio sobre o tema, mas fê-lo para dizer que a estrutura liderada por Lamas foi “uma decisão infeliz e sem qualquer futuro” do anterior Governo, uma vez que, na visão do autarca, o plano envolvia a “atribuição ao presidente do CCB competências sem qualquer sentido”.

No documento de setembro, o CCB é apresentado como “o mais moderno ‘polo intermodal’ de cultura viva e contemporânea de Lisboa, um ponto de encontro, um ponto de partida e/ou de chegada, para o muito que há a viver no interior deste sistema cultural e urbano”. Aquele equipamento, desde sempre envolvido em controvérsia e concluído em 1993, seria, de acordo com o plano, o “motor das dinâmicas culturais” e o “coordenador da gestão do Distrito Cultural de Belém”.

Para Marta Andrade, que pertence à direção do Sindicato Nacional da Atividade Turística, Tradutores e Intérpretes, o CCB está longe de ser uma atração turística. “Pelo menos 85% dos grupos organizados só têm entre quatro a oito horas” em Lisboa, explica ao Observador, indicando que, apesar de estarem a aumentar as pessoas que vêm por conta própria, a maioria dos turistas continua a vir em viagens de grupo. Ora, “em quatro horas não vão ver tudo” e já trazem na cabeça aquilo que querem ver em Belém. Os Jerónimos no topo da lista e, se houver tempo, a Torre de Belém e o Padrão dos Descobrimentos. “Não estou a ver nenhuma agência de viagens a incluir, com um bilhete mais caro, uma visita ao CCB”, comenta Marta.

Em vez da criação de “um sistema de bilhética integrado e inovador”, uma das grandes bandeiras do plano de Lamas, os guias-intérpretes preferiam ver melhorias concretas nas acessibilidades de Belém. “Os monumentos não estão preparados para receber a quantidade de turistas” que Lisboa tem hoje, diz Marta Andrade. Em dias de cruzeiros, tudo se complica ainda mais. “Vão todos para os mesmos sítios às mesmas horas”, explica, o que tem duas consequências. Primeira, “as filas para os bilhetes são enormes”. Segunda, “os autocarros têm de andar ali às voltas, às voltas, às voltas”, porque o estacionamento é escasso.

Regresso a um plano já aprovado

Apesar de os profissionais de informação turística não terem sido consultados para a elaboração do plano, algumas das suas preocupações foram tidas em conta. Na introdução do documento, Lamas escreve:

O acesso de visitantes a Belém está muito dependente do transporte em grandes autocarros de agências turísticas, que oferecem percursos com visitas concentradas aos Jerónimos, a norte da linha de caminho-de-ferro, e à Torre de Belém, a sul. Para além de não promoverem visitas alargadas a outros locais, o estacionamento descontrolado destes veículos na proximidade dos dois monumentos é um dos mais graves problemas de impacto visual e de acessibilidade à zona, a que acrescem pesados custos ambientais.

Um pouco mais à frente, propõe-se um reordenamento generalizado do estacionamento na área, bem como a criação de percursos pedonais e cicláveis. Esse é também um dos principais objetivos do Plano Estratégico para o Turismo na Região de Lisboa 2015-2019, aprovado no fim de 2014, e que dedica uma página à zona de Belém. Questionada pelo Observador sobre que ideias tem para ali, a Câmara Municipal de Lisboa remeteu para este plano, que a autarquia considera que deverá ser a futura base de trabalho. Nesse documento há propostas que coincidem com as de António Lamas: desenvolvimento de uma marca própria; criação de um bilhete único; relocalização dos parques de estacionamento e criação de postos multi-serviço para turistas.

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Existem pelo menos cinco bilhetes combinados para visitar os monumentos da zona de Belém:

  • Bilhete Descobertas (Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém): 12 euros
  • Bilhete Jerónimos (Mosteiro dos Jerónimos e Museu Nacional de Arqueologia): 12 euros
  • Bilhete Praça do Império (Mosteiro dos Jerónimos, Torre de Belém e Museu Nacional de Arqueologia): 16 euros
  • Bilhete Cais da História (Mosteiro dos Jerónimos, Torre de Belém, Museu Nacional de Arqueologia, Museu de Arte Popular, Museu Nacional de Etnologia e Museu Nacional dos Coches): 25 euros
  • Bilhete Calçada Real (Palácio Nacional da Ajuda e Museu Nacional dos Coches): 7,50 euros

Ao Observador, um assessor do Ministério da Cultura não quis explicar quais as intenções da tutela para Belém nem porque é que João Soares considerou as ideias de Lamas “um disparate”, mas garantiu que o Governo vai dar novidades sobre este assunto “muito em breve”. Segundo o presidente da câmara, já existe um entendimento entre o município e o ministério para o futuro da zona, mas tal não vai passar pela elaboração de nenhum documento novo.

Uma questão de dinheiro

Como, em setembro, o Governo de Passos Coelho já estava quase em fim de funções, o secretário de Estado da Cultura Jorge Barreto Xavier optou por não levar o plano mais longe. “Consideramos que não é este o momento oportuno para fazer uma resolução com essa proposta, mas sim torná-la pública para conhecimento das pessoas”, disse na altura ao Observador. Contactado agora, o ex-governante recusou alongar-se mais sobre o tema.

Na resolução do Conselho de Ministros que pôs fim à estrutura de missão, justifica-se o fim desse projeto com “a não consideração e envolvimento da Câmara Municipal de Lisboa” no mesmo, algo que tanto João Soares como Fernando Medina contestaram desde o princípio. De facto, a autarquia, a freguesia de Belém e as outras entidades que gerem equipamentos naquela zona foram reunidas numa Comissão de Aconselhamento sem poder executivo. Na altura, a DGPC também não gostou. “O modelo de gestão só pode vingar com uma intervenção ativa de todas as entidades, sobretudo as mais importantes. Não pode ser uma estrutura piramidal. A DGPC não pode aparecer como um mero consultor, porque é muito mais do que isso”, disse Nuno Vassallo e Silva, à data diretor-geral, em entrevista ao Diário de Notícias.

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Elísio Summavielle é o homem que se segue à frente dos destinos do CCB (Fotografia de Manuel de Almeida/LUSA)

Um dos pontos mais problemáticos do modelo de gestão do eixo Belém-Ajuda idealizado pela equipa de Lamas dizia respeito a dinheiro. Apesar de não estar escrito em lado nenhum, o presidente do CCB defendia que as receitas geradas em Belém deviam ficar em Belém, o que choca de frente com o modelo de redistribuição de fundos atualmente usado pela DGPC. “As receitas relativas aos monumentos e museus afetos à DGPC são integradas no seu orçamento de receita e distribuídas pelo património que lhe está afeto, segundo o princípio da subsidiariedade”, explica uma fonte desta entidade ao Observador.

Os três monumentos geridos pela DGPC que mais visitantes receberam em 2015 são precisamente os que se situam em Belém: Mosteiro dos Jerónimos, Torre de Belém e Museu dos Coches. Escudando-se no facto de a estrutura de missão já não existir, a DGPC recusou-se a responder às perguntas do Observador sobre a distribuição de dinheiro, mas o impacto nas contas dos outros equipamentos culturais seria significativo se aqueles três saíssem do bolo comum. Em entrevista ao Observador, até Barreto Xavier se mostrava cauteloso neste assunto. “Nós precisamos de garantir não só a melhoria da gestão aqui, mas também que ela não prejudica a gestão do património cultural no seu todo”, disse.

A DGPC não tem uma opinião fundamentada sobre a gestão daquela área”, respondeu esta instituição a perguntas do Observador.

Demitido António Lamas e extinta a estrutura de missão, vai chegar brevemente ao CCB um novo presidente, Elísio Summavielle, que afirma não querer desperdiçar o trabalho já feito em prol do eixo Belém-Ajuda. Apesar disso, realçou em entrevista à Lusa, que no mandato que está prestes a começar “a prioridade é dar vida a um monumento nacional que é o CCB”. Enquanto não há novidades sobre o assunto, Marta Andrade, representante dos guias turísticos, faz um apelo: que haja “maior diálogo com os profissionais”, que se sentem frequentemente “carne para canhão”. “Somos nós que estamos lá diariamente e parece que ninguém nos quer ouvir”, lamenta.