Ficou conhecido como cartoonista, mas no mundo de José Vilhena havia muito mais do que bonecos. Bem antes de fundar a Gaiola Aberta, revista pela qual é sobretudo conhecido, o autor escreveu e ilustrou dezenas de livros, que editava, distribuía e vendia de forma clandestina um pouco por todo o país. Por causa disso, andava sempre com a PIDE à perna, o que lhe valeu três temporadas na prisão de Caxias, uma delas por causa de um cobertor (já lá vamos). Tudo porque os seus livros eram muito mais do que histórias para fazer rir — eram chamadas de atenção para uma sociedade que estava podre por dentro.

Um dos muitos livros pelos quais teve de prestar satisfações à PIDE foi Avelina, Criada para todo o Çerviço, o diário de uma criada provinciana que abandona a sua terra natal, as Bouças, para ir servir para a casa da dona Carmindinha e do marido, o Dr. Cardoso. A história passa-se durante os anos 40, em plena Segunda Guerra Mundial. Apesar da sua linguagem simples, o livro esconde uma forte crítica social, procurando colocar a nu o atrito que existia entre diferentes classes sociais, numa altura de criados e criadas, senhores e senhoras.

Passados 50 anos, a obra regressa agora às bancas (ou melhor, às livrarias) pelas mãos da E-Primatur, numa edição fac-similada (reprodução do original) que reúne a trilogia original — “Avelina”, “O Trivial” e “Criada Para Todo o Çerviço”. O livro, publicado separadamente entre os anos de 1970 e 1971, é a segunda trilogia de José Vilhena a sair pela editora que, até ao final do ano, pretende adicionar mais uma das dezenas de obras do cartoonista ao seu catálogo. A primeira, História Universal da Pulhice Humana, saiu em novembro de 2015, um mês depois de Vilhena ter morrido.

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As edições de Vilhena da E-Primatur: “Avelina, Criada para todo o Çerviço” e “História Universal da Pulhice Humana”

Ao contrário de História Universal da Pulhice Humana, a escolha do segundo volume de trilogias foi mais ou menos democrática. Acedendo ao pedido de muitos leitores nas redes sociais, a editora decidiu avançar com a publicação da obra. Para Hugo Xavier, editora da E-Primatur, a vontade mostrada pelo público explica-se de uma forma muito simples — é que Avelina foi um livro “que marcou uma geração”.

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“Ele [José Vilhena] pega em coisas com as quais convivemos todos os dias, em sociedade, e que não são reconhecidas de forma aberta, mas fá-lo com um o grande sentido de humor que ele tem. Faz sempre um jogo de humor entre as relações de poder em geral, seja entre entre homens e mulheres ou entre a criada e o senhor. Traz para a ribalta coisas que as pessoas sabem que existe e torna-as públicas.”

Apesar de ter respondido à vontade de público, editar os pequenos livros de bolso de Vilhena era um sonho antigo para Hugo Xavier. “É um desejo antigo por uma coisa que a maioria das pessoas ignoram — leem-no como um humorista, mas a qualidade do livro é muito boa. Às vezes passa despercebido porque rimos à gargalhada.” Para além disso, obras como História Universal da Pulhice Humana ou Avelina enquadram-se no projeto que é a E-Primatur. “Queremos publicar livros que marcaram — cada um à sua forma, mas que marcaram.”

“Todos os livros dele são alertas claros sobre uma sociedade podre. Há uma clara preocupação social na escrita dele. Ele queria mudar a sociedade, tornando os podres visíveis. É uma critica social para que a sociedade melhore.”

É por ser um livro tão especial que a editora escolheu fazer uma edição fac-similada, reproduzindo todos os pormenores da trilogia original — as ilustrações, o tipo de letra. “Se fizéssemos isto com outro tipo de letra, o texto deslocar-se-ia em relação à ilustração, a relação perdia-se. E mais do que isso — este é um livro que é claramente para um público saudosista”, que recorda Vilhena também como escritor, e não apenas como cartoonista.

Vilhena, um autor desconhecido

José Vilhena nasceu a 7 de julho de 1927 em Figueira de Castelo Rodrigo, no distrito da Guarda. Em pequeno, “teve sarampo e todas as outras doenças peculiares nas crianças a quem a providência divina não ligou grande importância”, garante na sua “Autobiografia”.

Depois de cumprir o serviço militar obrigatório, frequentou o curso de Arquitetura na Escola de Belas Artes do Porto, nunca chegando a terminá-lo. Foi nessa altura que começou “a carreira humorística, a fazer caricaturas para os livros de curso”, contou ao Observador Luís Vilhena, sobrinho do cartoonista. Seguiram-se trabalhos para o Diário de Lisboa, fundado em 1921, e depois a pequena revista O Mundo Ri, que criou juntamente com António Paulouro, do Jornal do Fundão. “Eram umas publicações pequeninas de anedotas ilustradas. E também escrevia qualquer coisa”, explicou Luís Vilhena.

Talvez tenha sido com O Mundo Ri que lhe surgir o bichinho da escrita porque, passado pouco tempo, começaram a sair os livros de bolso, que publicou compulsivamente entre os anos 60 e 70. O primeiro que publicou foi, segundo a sua própria “Autobriografia”, Este mundo e outro, quando tinha 27 anos. As críticas não foram favoráveis, tendo sido “apedrejado” por alguns jornais.

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Seguiu-se o grande sucesso História Universal da Pulhice Humana, publicado em três fascículos entre 1960 e 1965, e Avelina que, para Luís Vilhena, “é um dos mais divertidos”. “Conseguimos perceber um pouco do que era a sociedade portuguesa da altura — a província, o Porto, o que era já Lisboa –, com muito humor. E depois há as figuras tipológicas — personagens a partir das quais se consegue construir a sociedade da altura.”

Depois de Avelina, veio um conjunto de três livros dedicados ao “filho da mãe”. “É muito engraçado porque o título da trilogia é ‘Filho da Mãe’, ‘O Filho da Mãe Volta a Atacar’ e ‘A Vingança do Filho da Mãe’.” Esta conta a história de um jovem provinciano, educado numa escola de padres e que sobre na vida “sempre a sacanear”. “Até que consegue ingressar como contínuo numa empresa grande, tipo Sacoor da altura, e chega a administrador sempre a sacanear.”

“O que tem piada nos livros dele é a atualidade de uma série de figuras. A história repete-se, e tem um pouco a ver com o carácter do português — a nossa maneira de viver, a nossa forma de vida.”

Apesar de muito populares à época, os livros de Vilhena acabaram por cair no esquecimento. Hoje, o cartoonista sobretudo é recordado pelas revistas satíricas que fundou depois do 25 de Abril, como a Gaiola Aberta, à qual dedicou vários anos da sua vida, ou O Fala Barato. Apesar disso, as obras que publicou durante uma década representam um dos períodos mais produtivos da sua vida.

“Não vou dizer que era um título por mês, mas era quase”, afirmou Hugo Xavier. “Era irregular, para além das milhares de revistas que ele dirigiu e muitas delas durante muito tempo. Ninguém hoje em dia tem essa capacidade de trabalho.”

O incorrigível e manhoso Vilhena que se deixou prender por um cobertor

Ninguém parece saber ao certo quantos livros Vilhena escreveu (uns falam em mais de 50, outros em cerca de 70), assim como ninguém parece saber ao certo quantos exemplares distribuiu por tabacarias, cervejarias e outros cantos mais ou menos obscuros de um Portugal onde apontar um dedo dava direito a prisão. Circulavam “às centenas de milhares”, em “grandes, grandes tiragens”. “Estamos a falar de um dos maiores bestsellers da literatura portuguesa do século XX”, afirmou Hugo Xavier, garantindo que, hoje em dia, Vilhena seria capaz de bater qualquer um dos atuais bestsellers que enchem as prateleiras das livrarias.

Pode parecer exagerado, mas a simplicidade com que Vilhena escrevia fazia com que os seus livros chegassem a todos — dos mais cultos aos menos instruídos. “Ele era de alguma forma perseguido [pela PIDE] porque era muito popular, embora a sua obra tenha várias camadas de leituras”, disse ao Observador Luís Vilhena, sobrinho do cartoonista. “As pessoas que tinham mais cultura liam aquilo com outra camada”, mas as outras também. Afinal, como escreveu Rui Zink no prefácio de Avelina, Criada para todo o Çerviço, “José Vilhena cada um tem o seu”.

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A distribuição das obras era feita “em duas ou três carrinhas, porque os livros não eram vendidos nas livrarias”, contou Luís Vilhena. “Inicialmente era, mas assim que a censura que lhe começou a cair em cima [os livros] começaram a ser vendidos debaixo do balcão.”

A impressão também era feita na clandestinidade, “à luz das velas”, garante Hugo Xavier. “Encontrava-se com alguém de uma gráfica no meio da rua e, quando apertava a mão a essa pessoa, recebia uma chapa.” Passava a noite na tipografia, a afinar a edição, a acertar pormenores. “O que eu acho de relevante na obra dele é que ele conseguiu criar uma máquina”, salientou o Luís Vilhena. “Ele escrevia, desenhava, paginava, montava, fazia fotomontagem, editava.”

Apesar dos problemas que a PIDE lhe trouxe, Vilhena nunca desistiu. Quando a polícia lhe batia à porta, simplesmente desaparecia, regressando às ruas movimentadas de Lisboa, onde vivia, depois da poeira assentar. “Quando os livros saiam ia dormir a casa de amigos ou ia para um hotel qualquer até aquilo passar. Quando iam lá a casa, a empregada dizia que o Sr. Vilhena estava de férias. Ele às vezes dizia-me: ‘Às vezes chamavam-me ali à censura para me dar uma lição de moral”, contou Luís Vilhena.

“Há um relatório da PIDE que começa com ‘o incorrigível e manhoso Vilhena’. Começa exatamente assim. ‘O incorrigível e manhoso Vilhena vem neste dia de suspeita da censura publicar mais um dos seus livros’.”

Só que nem sempre a ida à PIDE ficava por um raspanete, e Vilhena chegou a ser preso três vezes por alguns meses, uma delas por causa de um cobertor. “A segunda vez que foi preso foi em 1962, quando foi a greve dos estudantes. Ele foi à Faculdade de Ciências levar um cobertor à namorada que lá andava. Quando prenderam toda a gente, como ele tinha cadastro, também o prenderam. Não sei se é verdade, mas ele contava sempre a mesma história.”

Como os seus livros estavam constantemente a ser apreendidos pela censura, a certa altura decidiu facilitar o trabalho dos inspetores. “Às vezes mandava entregar à censura alguns exemplares”, disse Luís Vilhena. “Por exemplo, nunca ouvi o meu tio contar anedotas ou dizer um palavrão. Mas era mortinho por uma piada de oportunidade. Não falava muito nem nada. Se um tipo aparecia com a barba por fazer, ele dizia: ‘Então, hoje não tomaste banho?’, era esse tipo de piada que ele fazia. Mas com um ar muito sério. Daria a vida por uma piada. E arriscou.”