(Artigo publicado a 30 de agosto de 2016, aquando da celebração do seu centésimo aniversário, e recuperado a 5 de fevereiro pela altura da morte do ator.)

Issur Danielovitch, aliás Izzy Demsky, aliás Kirk Douglas, nasceu a 9 de dezembro de 1916. Morreu esta quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020, aos 103 anos. O filho de judeus emigrados da agora Bielorússia, e instalados em Nova Iorque, único rapaz entre seis irmãs, cujo pai andava ao trapo nas ruas (em memória deste, Douglas intitulou a sua autobiografia “Ragman’s Son”, “Filho do Trapeiro”), era uma das últimas glórias vivas, juntamente com Olivia de Havilland, também naquela altura centenária, de uma Hollywood clássica morta e enterrada faz bastante tempo. Em 2016, a Cinemateca assinalou os 100 anos do ator, e também produtor e realizador, com um ciclo intitulado “A Vida Apaixonada de Kirk Douglas”.

[As muitas faces de Kirk Douglas]

Além dos 100 anos de vida do intérprete de “A Vida Apaixonada de Van Gogh”, de Vincente Minnelli, onde a Cinemateca se foi inspirar para batizar este ciclo, e que lhe deu uma das três nomeações ao Óscar de Melhor Ator da sua carreira (nunca ganhou, só recebeu uma estatueta honorária em 1996), 2016 marcou ainda os 70 anos da estreia do ator no cinema, no policial “O Estranho Amor de Martha Ivers”, de Lewis Milestone, onde faz de marido pusilânime de Barbara Stanwyck. Douglas tinha então 30 anos, experiência em teatro e radionovelas e queria fazer carreira no palco.

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O papel foi-lhe conseguido junto do produtor, o célebre Hal B.Wallis, por Humphrey Bogart e Lauren Bacall. Esta tinha sido sua colega na American Academy of Dramatic Arts de Nova Iorque, e ajudado mais do que uma vez, quando Kirk Douglas, estudante bolseiro, estava entre empregos mal pagos e não tinha cheta, sítio onde ficar ou sequer um sobretudo para enfrentar os gélidos invernos da cidade.

[“O Estranho Amor de Martha Ivers”]

Os críticos cobriram de elogios a interpretação de Kirk Douglas em “O Estranho Amor de Martha Ivers” (um deles chamou-lhe “um ator de cinema natural”) e os papéis começaram a surgir de imediato. Logo a seguir, fez um dos seus vários “duros”, neste caso um “gangster”, noutro “filme negro” memorável, “O Arrependido”, de Jacques Tourneur, ao lado de Robert Mitchum e Jane Greer, deixando já adivinhar que, por amor à arte, predisposição e sentido do risco, não iria deixar-se estereotipar ou ficar preguiçosa e confortavelmente encostado a papéis positivos e seguros.

Tornou-se um cliché classificar Kirk Douglas como um ator “excessivo”, demasiado zeloso, por vezes a namorar o “overacting”, bem como frisar a quantidade de filmes em que as suas personagens sofrem tratos de polé, ou tiranizam outras. Ou ainda os extremos temperamentais e os estados de espírito violentamente contrastantes que elas privilegiam (“No espaço de um plano, Kirk Douglas consegue ir da arrogância ao desespero”, escreveu o crítico americano Kenneth Turan).

[“A História de um Detective”]

Esse gosto pelos extremos, essa omnipresença da violência e do sofrimento físico e psicológico, e essas manifestações duais de feitio recorrentes nos seus filmes (e também na vida, já que Kirk Douglas é conhecido pela sua personalidade conflituosa: que o digam Anthony Mann, despedido de “Spartacus”, Stanley Kubrick, submetido à sua fúria depois de ter mexido no argumento do filme sem primeiro o ter consultado, ou Robert Aldrich, arredado sem mais da montagem de “Duelo ao Pôr do Sol”) são a expressão, por um lado, de uma pujante e afirmativa dimensão física; e pelo outro, de um individualismo enfático e um gosto (ou mesmo uma necessidade) de espremer as suas capacidades dramáticas até à última gota.

A que se acrescenta o gene eslavo (ou a “alma russa”, como escreveu João Bénard da Costa) que o faz ter um fraquinho por personagens instáveis, revoltadas, às voltas com o lado mais turvo da alma humana, e que vão da euforia à agonia, da agressão à contrição, e o levou a ser considerado o actor mais maníaco-depressivo do cinema americano. Como ele resumiu: “Fiz carreira a interpretar filhos da puta.”

[“O Grande Ídolo”]

Seja como for, ninguém pode negar a Kirk Douglas, além daquele “não-sei-o-quê” que faz as estrelas de cinema, a fotogenia intensa, uma masculinidade magnética, o culto intensivo, apaixonado, quase fanático, do realismo na representação, a enorme capacidade de trabalho e um profissionalismo consumado (Melville Shavelson, que o dirigiu em “À Sombra de um Gigante”, conta que Kirk Douglas era o único actor do elenco que além do seu papel, sabia os de todos os outros, tinha lido todas as indicações do argumentista, era um bom ouvinte e questionava-o constantemente ao longo das filmagens, embora sempre com pertinência). E o tal individualismo que cedo o levou a fundar a sua própria produtora, a Bryna Productions (assim chamada em homenagem à mãe) para levar avante os seus projectos.

[“Horizontes de Glória”]

É sob a bandeira desta que floresceram filmes em que brilhou como “O Caçador de Índios”, de André de Toth, “Horizontes de Glória” e “Spartacus”, de Stanley Kubrick, “Os Vikings”, de Richard Fleischer, “O Último Comboio de Gun Hill”, de John Sturges, “Um Estranho na Minha Vida”, de Richard Quine (onde Kim Novak lhe acaricia a covinha do queixo), “Fuga sem Rumo”, de David Miller, “Sete Dias em Maio”, de John Frankenheimer, ou “A Contagem Final”, de Don Taylor.

Foi também enquanto produtor e intérprete de “Spartacus” que Douglas ajudou a acabar de vez com a Lista Negra em Hollywood, ao creditar como argumentista do filme Dalton Trumbo, militante do PCUS e o mais talentoso membro daquela , em vez de o ocultar sob um pseudónimo. A história está contada num dos seus livros, “I Am Spartacus: Making a Film, Breaking the Blacklist”. Em 1963, após fazer na Broadway “Voando Sobre um Ninho de Cucos”, comprou os direitos da obra e cedeu-os ao filho, Michael Douglas, que produziu o filme homónimo de Milos Forman com Jack Nicholson.

[“Os Vikings”]

[“Spartacus”]

Se por vezes, e inevitavelmente, Kirk Douglas foi muito mau, também foi muitas vezes muito bom, e dirigido por muitos dos melhores, quer interpretasse um herói clássico de acção e aventura, um herói melodramático ou ferido de ambiguidade e fraqueza de carácter, um canalha ou um “torturado”. Recordo, entre as décadas de 40 e 60, o “cowboy” de “Homem sem Rumo”, de King Vidor, o explorador de “Céu Aberto”, de Howard Hawks, o magnífico Ulisses do subvalorizado filme homónimo de Mario Camerini, o jornalista amoral de “O Grande Carnaval”, de Billy Wilder, Ned Land de “20.000 Léguas Submarinas”, de Richard Fleischer, o pugilista bruto e falso de “O Grande Ídolo”, de Mark Robson (onde dá e leva pancada de criar bicho), ou o polícia cínico e sádico de “História de um Detective”, de William Wyler.

[“Céu Aberto”]

[“Ulisses”]

E não esquecer o Doc Holliday de “Duelo de Fogo”, de John Sturges (ao lado do Wyatt Earp de Burt Lancaster, com o qual fez uma caterva de filmes), o xerife de “A Caminho da Forca”, de Raoul Walsh, o produtor manipulador e tirânico de “Cativos do Mal”, de Vincente Minnelli, e o actor acabado e em busca de redenção de “Duas Semanas Noutra Cidade”, do mesmo Minnelli. Ou ainda o advogado dividido entre três mulheres de “Muralhas Humanas”, de John M. Stahl, o publicitário adúltero e em depressão de “O Compromisso”, de Elia Kazan, e o penitenciário de “O Réptil”, o anti-“western” de Joseph L. Mankiewickz. Uma palavra também para o seu papelão como ex-agente da CIA em “A Fúria”, de Brian De Palma, já em 1978.

[“O Grande Carnaval”]

[“Duelo de Fogo”]

Kirk Douglas também sabia rir-se de si mesmo e brincar com os excessos que lhe eram apontados. Pôde demonstrá-lo em especial a partir dos anos 70, com o advento de uma nova Hollywood e a gradual escassez de papéis para actores da geração dele (algo cruelmente, a revista satírica “National Lampoon” tinha instituído o Prémio Kirk Douglas para o pior actor do ano), que o levaria com regularidade à televisão.

Fê-lo por exemplo no “western” cómico “Cactus Jack, o Vilão”, de Hal Needham (1979), ao lado de um certo Arnold Schwarzenegger; e num dos dois filmes que realizou e interpretou, a aventura de piratas “Scalawag” (1973) – o outro é um “western” à antiga, “Cavalgada dos Destemidos”; e em comédias bonómicas como “Os Duros”, de Jeff Kanew (1996), ao lado do velho amigo Burt Lancaster, fazendo dois “gangsters” que saem da cadeia depois de cumprirem longas penas, e deparam com um mundo irreconhecível.

[“20.000 Léguas Submarinas”]

[“A Fúria”]

Em 1991, Douglas sobreviveu a um desastre de helicóptero que o deixou com problemas crónicos nas costas. E em 1996 sofreu um AVC que lhe afectou a fala. Submeteu-se a uma exigente terapia, tendo depois disso ainda aparecido nalguns telefilmes e filmes, caso de “Corre no Sangue”, de Fred Schepisi (2003), ao lado de vários membros da sua família.

Escreveu vários livros e era um grande adepto da Internet — e o seu “blogger” mais idoso. Kirk Douglas era uma lenda viva do cinema. Como ele disse numa entrevista na televisão: “Amem-me ou odeiem-me, pouco me importa. Mas não sejam indiferentes.” Indiferentes? É coisa totalmente impossível, perante um currículo destes, Sr. Kirk Douglas. Só podemos é admirá-lo, mesmo quando faz de refinado traste.