A procuradora-geral da República (PGR) criticou a falta de meios que marca a atividade do Ministério Público e diz mesmo que a escassez de magistrados prejudica o combate contra a corrupção.
A procuradora-geral da República reclamou hoje, no seu discurso de abertura do ano judicial, mais meios para o Ministério Público lutar de forma mais eficaz contra este tipo de criminalidade. Joana Marques Vidal diz mesmo que a “escassez de magistrados prejudicou um combate mais eficaz à corrupção”.
A escassez de magistrados prejudicou igualmente, ainda de que certa forma, a possibilidade de ensaiar novos e distintos modelos organizacionais para responder com mais eficácia aos desafios do combate à criminalidade grave e complexa, à criminalidade económico-financeira e à corrupção”, afirmou a PGR.
O mandato de Joana Marques Vidal tem sido marcado pelas investigações à criminalidade económico financeira, nomeadamente a luta contra a corrupção, sendo as investigações ao caso Sócrates e Vistos Gold os maiores exemplos dessa estratégia.
A PGR diz que a escassez de magistrados do MP implica “um maior esforço” das equipas atuais mas também “um ambiente de desmotivação suscetível de poder prejudicar os resultados positivos que, apesar de tudo, foram alcançados no ano transato”.
Comparando o primeiro semestre de 2015 com período homólogo de 2016, Marques Vidal afirmou que o MP alcançou os seguintes resultados:
- Taxa de resolução processual passou de 106% para 111%;
- Aumentou de 21% para 27% o número de inquéritos em que reuniu indícios de crime, tendo prosseguido o exercício da ação penal, quer por acusação quer por suspensão provisória do processo;
- As taxas de condenações em julgamento superiores a 80%;
O recurso a formas simplificadas do processo aumentou de 55% para
66%; - A duração média dos processos de inquérito diminuiu;
A PGR chamou ainda a atenção para a importância da cerimónia desta manhã que, além de servir aos diferentes operadores judiciários para prestarem contas à comunidade, também constitui “um reflexo do profundo respeito pelos valores constitucionais da independência dos Tribunais e da autonomia do Ministério Público, como princípios basilares do Estado de Direito Democrático” – valores que, de acordo com Joana Marques Vidal, têm vindo a ser violados “por esse mundo fora”.
Por isso mesmo, Marques Vidal considera que o prestígio do MP, assim como a confiança dos cidadãos na Justiça, resultam “das respostas às suas pretensões e às suas queixas, da capacidade de reação do sistema de justiça à violação dos direitos e à ofensa dos bens e valores juridicamente protegidos.”
As críticas da PGR ao Governo
A PGR falou ainda da importância que o MP dá à área administrativa e fiscal, já que esta jurisdição lida com matérias “decisivas e fundamentais no cumprimento dos direitos dos cidadãos e na legalidade da ação da Administração e do Estado. Não sendo despiciendo o contributo decisivo de algumas das decisões para uma maior transparência nos negócios do Estado”.
No que respeita à área de família e menores – a sua área de referência como magistrada — a líder do MP teceu críticas à proposta do Governo para alterar a organização judiciária, por temer que se possa”traduzir num claro retrocesso”, já que os processos desta jurisdição podem vir a ser distribuídos a magistrados não especializados.
“Qualquer solução organizativa nesta matéria deve ser encontrada num quadro que, não descurando a proximidade e a facilidade do acesso do cidadão à justiça, consagre e desenvolva a especialização. Especialização dos tribunais e especialização dos respetivos magistrados e funcionários. Na esteira, aliás, das recomendações e deliberações constantes de diversos documentos internacionais a que Portugal aderiu. Contrariamente ao que se ouve dizer, não basta o bom senso!”, criticou.
A PGR reclamou igualmente mais meios para esta área. “Um quadro de funcionários devidamente dimensionado e com formação e preparação específica para um cabal desempenho no âmbito processual da competência do Ministério Público, designadamente na investigação criminal. O que determina a urgência de uma reflexão sobre o quadro legislativo regulador das carreiras dos oficiais de justiça, da sua formação e dos respetivos critérios de colocação e mobilidade”, afirmou.
Francisca, a ministra da revolução tecnológica
Francisca Van Dunem, ministra da Justiça, começou por falar da “interdependência” entre os diferentes poderes que constituem o Estado: legislativo, executivo e judicial. Fê-lo para enfatizar a necessidade de cooperação entre o poder político e o judicial para alcançar o fim comum de uma Justiça de maior qualidade.
Van Dunem criticou o mapa judiciário criado pelo governo de Passos Coelho em 2014 por ter insistido numa nova organização judiciária que esqueceu “áreas territoriais já vulneradas, privando as respetivas populações de uma presença judicial acessível”. Por isso mesmo, o governo de António Costa decidiu intervir para fomentar “aproximação da justiça dos cidadãos, em particular nas jurisdições de família e menores e penal”.
Van Dunem justificou as alterações propostas (que, em parte, foram criticadas pela procuradora-geral Joana Marques Vidal) com “estudos geográficos e demográficos da Nova Information Management School da Universidade Nova de Lisboa” que apontam para impactos importantes”:
- “O acesso à jurisdição de família e menores fica facilitado a mais de 880 mil cidadãos, sendo que destes, 178 331 têm idade inferior a 19 anos”.
- “No penal, as alterações – circunscritas aos julgamentos em tribunal singular – permitirão reaproximar da justiça cerca de 240 mil cidadãos, reaproximação que conhece maior expressão nas comarcas de Bragança, Viseu e Portalegre.”
Em paralelo, está a ser desenvolvida a revisão dos Estatutos das magistraturas. A ministra da Justiça não deixou de admitir, contudo, que a “adaptação à reforma judiciária, associada ao desequilíbrio entre os ritmos de entradas e saídas de magistrados e oficiais de justiça, debilitando a capacidade de resposta do sistema, terá favorecido a manutenção do congestionamento em algumas jurisdições”.
Por isso mesmo, “já foi retomada a regularidade no recrutamento de magistrados e o Centro de Estudos Judiciários”, ficando já em setembro no “no limite da capacidade instalada”. Segundo a ministra, foi “reposta a regularidade das situações de substituição em que exerciam numerosos oficiais de justiça”, iniciando-se a “a normalização do recrutamento, no sentido de reequilibrar o nível de preenchimento do quadro, gravemente afetado, no ano que termina, por um fluxo atípico de aposentações”.
Para o futuro, a ministra da Justiça tem as seguintes preocupações centrais:
- “Legislar menos, mas legislar melhor. Com mais ponderação da necessidade, melhor articulação, mais clareza;”
- “Investir seriamente na formação específica de magistrados e oficiais de justiça, em segmentos criminais complexos, como a corrupção, as grandes fraudes, a criminalidade grave nos mercados financeiros e de valores mobiliários, as formas de violência radicais, na família e na sociedade;”
- “Insistir no reforço da capacitação da Polícia Judiciária;”
- E reforçar o uso da tecnologia — uma das suas grande apostas: “As tecnologias, colocadas ao serviço da justiça, têm efetivo potencial para melhorar as condições de desempenho e a relação entre os tribunais e os cidadãos.”
Bastonária ataca “máquina judiciária” e com esperança em “novos ventos”
Elina Fraga aproveitou a última intervenção que fez como bastonária da Ordem dos Advogados na abertura do ano judicial para criticar uma “máquina judiciária” que diz estar “presa às estatísticas”, que “confunde celeridade com automatismo” e “despreza a presunção da inocência”.
Perante uma sala cheia de juízes, procuradores e advogados a bastonária foi dura com “alguns magistrados, que renegam pertencer à família judiciária, para se integrarem no que permitira chamar máquina judiciária”. Isto para logo a seguir concluir: “Não são esses juízes e procuradores que queremos que o Centro de Estudos Judiciários forme. Nós não queremos autómatos”.
Num contexto de críticas públicas duras aos procuradores (sobretudo relativos à condução do processo da Operação Marquês), dominante nos últimos dois anos, a bastonária traçou ainda o que considera ser o perfil ideal:
Procuradores descomprometidos com os poderes e os interesses, que investiguem e acusem, num quadro de respeito pelos princípios e valores desse Estado de Direito, cumprindo os prazos numa manifestação de respeito pela presunção de inocência”.
Elina Fraga termina o mandato no próximo ano e aproveitou para deixar algumas queixas sobre o setor, nomeadamente aos meios disponíveis e na relação da justiça com os cidadãos, mas sobretudo com as empresas. Dirigindo-se ao poder executivo, a bastonária pediu “a reabertura de Tribunais, a agregação de anteriores comarcas, sempre que a pendência o justifique, a criação de novas secções especializadas nos concelhos mais afastados das comarcas ou o desdobramento das já existentes”. Isto além de apontar aos “tribunais do trabalho sem meios, nem dignidade” que diz gerarem “sentimentos de impunidade das entidades empregadoras, desalento nos trabalhadores e desigualdade nas relações do trabalho”.
Ainda assim, fez rasgados os elogios deixados à atual ministra da Justiça, mas sobretudo para atacou, sem nomear antigos governantes: “Os que quiseram inscrever, solitária e ambiciosamente, o seu nome na história, acabaram por ser os que redigiram a sua página mais negra”, afirmou. A verdade é que não precisava de nomear já que no seu discurso constou uma crítica direta ao anterior Executivo — à ex-ministra Paula Teixeira da Cruz — com Elina Fraga a considerar que “não fossem os advogados e as advogadas a garantir o acesso ao direito e aos tribunais todo este sistema teria desmoronado com a implementação do novo mapa judiciário”.
A Francisca Van Dunem, Fraga deixou elogios por não ter legislado “a metro, nem ao quilo, reincidindo em políticas do passado que valorizavam a produção legislativa, produzindo-se legislação compulsivamente” e por não ter rasgado anteriores reformas. Mas o elogio e esperança maiores foram relativas ao Presidente da República que diz ter inaugurado “novos tempos” com “novos ventos” que “devolvem a confiança nas instituições”.
Henriques Gaspar, presidente do Supremo, em luta contra o populismo penal
Se a PGR faz questão de lutar contra a corrupção, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) luta contra o que “apelida de populismo penal” e as “perceções construídas na emoção e na desinformação”, alimentadas pela comunicação social, que os cidadãos têm dos resultados do sistema de justiça.
Os “novos mitos sem consistência racional” que levam a criticar a morosidade da Justiça são refutados por Henriques Gaspar com os seguintes resultados:
- “Na última década, de modo consistente, a taxa de resolução e a taxa de descongestionamento processual têm vindo a melhorar, com valores muito positivos em 2015 e no primeiro trimestre de 2016, baixando as pendências processuais (12%)”;
- “Nos dados mais recentes, o tempo de duração média na primeira instância em matéria cível, excluídas as execuções, foi de 17 meses”;
- “Em matéria penal, a duração média desde a acusação foi de 10 meses e meio”;
- “Na justiça laboral verificam-se oscilações no desempenho – média de duração entre 11 meses e 12 meses e meio;”
O presidente do STJ, que representa o líder do poder judicial, reconhece que nem tudo são rosas. Nomeadamente, no campo da ação executiva, “consequência agregada de um erro histórico e genético do modelo e dos efeitos devastadores da crise económica” que representa cerca de “70% de todo o contencioso”. E aqui os números são claramente negativos: “Indicações empíricas de instâncias centrais de execução mais significativas apontam para taxas de eficácia nos 2% ou 3%.”. Valores que exigem reflexão, segundo o presidente do STJ.
Reflexão que, contudo, tem um pressuposto:
A dimensão do problema constitui expressão de uma economia doente”.
No campo criminal, Henriques Gaspar fala na existência de um “populismo penal” que “compromete o sentido das percepções, e coloca a justiça perante tensões cruzadas, tanto na compreensão das decisões, como na resposta a tentativas de indução ao unilateralismo através da força da comunicação” – leia-se, nestas últimas palavras, comunicação social.
São os media que promovem uma “adesão emocional, simples e compreensível, a causas que se acolhem ao sentimento comum, embalada em sedução suave e retórica e com imenso espaço na comunicação”. Isso, na opinião do presidente do STJ, pode “afetar o sentido da proporcionalidade e criar o risco ambiental de contaminação da qualidade da prova”. Por essa razão, “num ambiente de unanimismo das emoções, como se tudo estivesse antecipadamente decidido, podem surgir, por vezes, dificuldades em aceitar a decisão dos tribunais”.
Tal “populismo penal” merece a discordância do presidente do STJ porque além de “os tribunais” serem um espaço onde “a prudência, a sabedoria e a coragem nos seus julgamentos” permitem que enfrentem a multidão”, a comunidade não deve esquecer que “a condenação de alguém inocente constitui o absoluto da ofensa à dignidade da pessoa humana”.
Henriques Gaspar fez questão de recordar que Portugal, apesar de uma “criminalidade moderada” em termos europeus, tem, “paradoxalmente, uma das mais elevadas taxas de encarceramento por 100.000 habitantes, e a maior duração média da permanência na prisão em relação aos países da União Europeia”.
O presidente do STJ falou ainda na “corrosão semântica do crime de corrupção”, que se traduz numa “grave e infamante violação do dever sagrado de probidade do servidor público”. Por outro lado, também mencionou “a criminalização, sob o mesmo nome, da improbidade no setor privado, equiparando interesse público e interesses privados”, o que “enfraqueceu o peso axiológico do conceito”. Isto é, Henriques Gaspar aparenta discordar da equiparação que foi feita entre o crime de corrupção para ato ilícito (que se aplica a funcionários públicos ou quem tenha um estatuto equiparado) e o crime de corrupção no setor privado.
As alterações penais que levaram a um alargamento e aumento de pena do crime de branqueamento de capitais também terão a discordância do presidente do STJ. “Também o crime de branqueamento de capitais perdeu o verdadeiro sentido referencial com o aumento do catálogo e a diversidade de crimes subjacentes”, afirmou.
Justiça como “condição de confiança”
O presidente da Assembleia da República também discursou na abertura do ano judicial para alertar para o “défice de confiança” na sociedade, colocando a Justiça como “condição da confiança”. E um dos exemplos dado foi sobre as decisões da justiça que se espera, segundo Ferro, que sejam “justas e independentes, dentro de um prazo justo”.
Numa República Democrática não há cidadão de primeira e de segunda; não há quem esteja acima da Lei nem quem seja colocado abaixo da lei”
Mas Ferro também aproveitou o momento para apontar para uma área onde vê “consenso”: os custos de contexto com a burocracia e os custos associados à morosidade do sistema. Assim, Ferro Rodrigues pede os partidos com representação parlamentar para se concentrarem “no que os une”.
Apostemos a sério naquilo que sabemos garantidamente poder vir a fazer a diferença para facilitar a vida dos nossos cidadãos e às nossas empresas”
Ferro considera mesmo que “a reforma do Estado também passa por pequenas mudanças que, somadas, constituem avanços importantes, que não aumentam a despesa e que nos podem colocar noutro patamar de competitividade”. As “pequenas mudanças” pedidas por Ferro dizem respeito à área da Justiça que pode influenciar a competitividade das empresas e atração de investimento, diz o socialista.