Nicholas Bloom é um homem morto. JP Simões nem tanto. “A única coisa que não mudou nestes dois projetos é o facto de estar vivo, ainda que tenha as minhas dúvidas”, desabafa. Tudo o resto é contraste, daquele que não exige grande sombra. Afinal, o cantor e compositor inglês que JP agora encarna foi de uma gentileza estranha. Conheceram-se num bar em Buenos Aires, lugar onde Nicholas se interessou por este caso: “Não sabia onde levar a minha música e ele, que detesta o mundo da música, detesta quando as coisas se transformam em mercadoria, mostrou-me a música que fez durante toda a vida mas que nunca editou. Depois, disse-me que podia usar o nome e as afinações dele porque também ele sempre quis ser outra pessoa. Esta é a história do Bloom”, conta, sem grande interesse em distinguir o real da ficção.
Entremos, então, em solo menos pantanoso. Ou tentemos, que os ouvidos não parecem para aí virados. Estamos sentados no Sagrada Família, bar de decoração retro-cool na Rua dos Remédios, em Lisboa, e a culpa é de Tremble like a Flower, primeiro disco de Bloom, que nos condena as heresias através de um conjunto de nove canções de caixilharia bossa nova. Deem-se as chaves da casa a Tom Jobim e a David Bowie, escutem-se estas expressões que vão do barroco à folk descomprometida, que passam por uma tragédia meio jazzy mas sem anseio pelo desespero.
O mesmo já não podemos dizer de JP Simões, ou Bloom, como preferirem. “O outro senhor já estava desgastado e a música que ele fazia também já não me agradava, é uma vontade encarnada de mudar de perspetiva, a minha música sempre foi uma auto-narrativa exagerada. Isso desapareceu e o nome teve que mudar porque já não é a mesma pessoa”, afirma antes de acrescentar: “Nós devíamos mudar de nome várias vezes na vida”. E se isto não é desespero, então vá-se lá saber o que é. Todo o camaleão se acaba por fartar — de tudo. E enquanto prosseguimos, sucedem-se as faixas que podiam servir de banda sonora para um sem fim de tarefas domésticas. O próprio artista diz que “é isso mesmo” e antes que surjam dúvidas, esclarecemos: tudo isto é muito bom.
Tremble like a Flower foi construído nos últimos três anos, entre Buenos Aires e Lisboa, mas essas foram só duas das paragens. A partir do momento em que conheceu Bloom, o artista português desatou a ouvir blues seminais, todo o Mississippi, mas também gente de outras guitarradas, mais introspectivas, como Nick Drake. E a comer comida de avião.
“Uma coisa dolorosa é que para onde quer que vás tens que te levar, a ti e às tuas cenas. Concentrei demasiado o lado trágico da cultura ocidental, acordo sem vontade de me levantar, queria-me escapar disso, viajar foi uma maneira de o fazer, muito embora as mudanças não tenham sido imediatas. Só surgiram quando comecei a libertar-me, com as memórias que tinha das minhas viagens, algo que o Pessoa explica: ‘Viajar é perder países’. Fui perder uns quantos”, confessa.
“Grande sítio para a escuta, hein?”, atira JP Simões, “Até apetece dançar”. Todos os presentes sugerem que JP está de bem com a vida, sinónimo de que tal façanha nem sempre é regular, que este disco é um deleite para a mente atribulada deste criador. “Estou tão feliz com este disco que nem quero saber o que me vão dizer. E sim, sempre me preocupou o que os outros pensam, qualquer narciso tem esse problema, além disso, nunca estudei música, não percebo nada disto”, continua a auto-sátira. E se é por esse manto que estamos, deixemo-nos ficar por esta dança do “odeio-me mais ainda”: “Sou o meu pior crítico, portanto, ou estou a perder qualidades ou o disco está mesmo bom”. A segunda, senhor Simões, a segunda hipótese.
Demos todas as voltas que acharmos necessário, se há coisa certa por aqui é que Bloom é a tentativa estoica de JP Simões se encontrar, achar-se bem ao espelho, libertar-se dos demónios da presunção e encarar as rugas, os quase 50 anos. Enquanto escutamos “Meeting Time”, que esteve para ser o nome do disco, enquanto ouvimos uma faixa sobre Jan Palach – estudante checo que se imolou em público como protesto perante a Primavera de Praga – é impossível dissociarmo-nos, mais uma vez, de Bowie. “A ‘Tremble like a Flower’, foi a última malha que fiz, depois do afastamento do Bowie do nosso mundo, e foi baseada numa passagem do ‘Let’s Dance’. Pus-me a pensar o que aconteceu àqueles dois miúdos que no ‘Starman’ diziam que estavam a ouvir rádio. O que é feito desses miúdos? Envelheceram também. Todo este disco foi feito dentro da vertigem do envelhecimento”, explica.
Tremble like a Flower é, em todo o caso, um objeto que poupa dinheiro ao artista em terapias – sim, que as batas brancas são ordem para fugir: “Fazer música para mim é poupar em psicanálise… e às vezes ainda ganho dinheiro com isso” – e, portanto, algo profundamente pessoal, egoísta até: “Nunca fiz nada de que não me aborrecesse depois de acabar, à terceira audição. Este é um trabalho onde tentei pôr o melhor que a música me poderia devolver. É essencialmente um disco para mim, para ver se aprendo qualquer coisa, é um disco que me dá as dicas todas, que me sugere viver melhor”.
Só falta segui-lo. A ele e a outro pai da música moderna, o senhor Miles Davis, que JP, às tantas, trata de citar: “‘Não há nada mais difícil do que soares a ti próprio’. Acho que depois destes anos todos estou finalmente a soar a mim próprio”. A tragédia de JP Simões teima em não acabar e o sarcasmo confunde-se com o brilhantismo: “Só não me perguntes porque é que canto em inglês, se o fizeres respondo-te em inglês”. A certeza de que esta conversa, esta amena audição de um disco, se prolongaria noite dentro, não fosse existirem mais afazeres. Bloom veio para ficar. E ainda bem, mais que não seja por isto: “Uma das coisas que mais me tranquiliza é que nunca mais me vão perguntar se se diz J P Simões ou Jêpê Simões”. A ver vamos.
O primeiro álbum de Bloom conta com a participação de Miguel Nicolau, Marco Franco, Sérgio Costa e Carlos Bica. É editado em outubro e no dia 25 haverá concerto de apresentação, integrado no cartaz do festival Jameson Urban Routes, no Musicbox, em Lisboa. Mais informações aqui.