No dia 30 de Abril de 1877, inaugurava-se em Londres uma galeria de arte que prometia rivalizar com a Royal Academy, usando como trunfo precisamente alguma da arte que fora rejeitada pela outra galeria, sobretudo obras dos Pré-Rafaelitas. Essa exposição perdura na História não tanto pelo seu valor artístico, mas mais porque nela se deu a aparição de um jovem estudante de Oxford de vinte e três anos de idade, vestido com um casaco que tinha a forma de um violoncelo, e que, graças ao seu witt, se tornou parte do espectáculo e a peça mais cobiçada de toda a exposição.
Em Novembro de 1900, o mesmo homem afirmava, talvez exageradamente, ter sido o responsável pelo falhanço da Exposition Universelle, que teve lugar em Paris nesse ano, alegando que todos os visitantes britânicos fugiram da exposição assim que lá o encontraram tão bem vestido e feliz, algo que, disse o mesmo homem, era uma imagem que eles não podiam suportar. No princípio do mês seguinte, este homem foi sepultado num cemitério parisiense depois de, segundo o próprio, ter passado um mês a morrer acima das suas possibilidades.
O seu corpo ainda se encontra enterrado na capital francesa, cidade que, cento e dezasseis anos após a sua morte, lhe presta homenagem com a exposição Oscar Wilde, l’impertinent absolu, a decorrer no Petit Palais até 15 de Janeiro de 2017. Nesta exposição, o visitante poderá encontrar, entre outras coisas, manuscritos de textos de Wilde, objectos pessoais do autor, as famosas fotografias resultantes da sessão feita no estúdio de Napoleon Sarony ou mesmo obras de arte que Wilde admirava, como, por exemplo, o São Sebastião (1616) do pintor bolonhês Guido Reni. Trata-se, pois, de uma exposição sobre a vida e obra de Oscar Wilde que parece ter em conta que o escritor irlandês se esforçou para que a sua vida fosse uma continuação da sua arte. Muito provavelmente, esta é a única exposição que Wilde consideraria capaz de embaciar a sua presença, mas ainda assim incapaz de a apagar completamente.
Os artistas nas cidades
As causas que levam a que cidades prestem homenagens a artistas são, quase sempre, de quatro espécies: 1) o artista nasceu nessa cidade, 2) o artista viveu nessa cidade, 3) o artista morreu nessa cidade, 4) o artista elogiou essa cidade na sua obra. O dublinense Wilde cumpre três dos quatro requisitos para ser homenageado por Paris. Porém, achar que as causas que Paris usa para homenagear um artista são as mesmas que são usadas por Moimenta da Beira não me parece que seja a via mais frutífera para tentar perceber o que leva a que os comissários da exposição afirmem que “Paris devia uma homenagem a Wilde”.
De facto, o que não falta na história de Paris são artistas que cumprem não só um ou dois dos habituais quatro requisitos necessários para receber uma homenagem, mas todos esses requisitos, sendo ainda muitos deles artistas de qualidade superior, um critério que nem sempre é tido em conta por aqueles que prestam homenagens. Com a realização desta exposição, a capital francesa, mais do que homenagear-se a si própria usando um artista como desculpa para o fazer, presta homenagem a um artista digno de ser homenageado por aquilo que fez e não por aquilo que fez pela cidade.
Talvez por ser uma cidade excepcional nesse âmbito, Paris tenha sido sempre tão atraente para artistas que lidam mal com a pequenez regionalista. O que este evento nos mostra é que fazer exposições que visam homenagear artistas estrangeiros devia ser uma prática comum e não uma prática que causasse espanto aos locais. Se tal prática fosse mais recorrente, talvez, por hipótese, as cidades de Lisboa e Buenos Aires sentissem a necessidade de homenagear respectivamente o escultor Auguste Rodin e o escritor Eça de Queiroz, ao ponto de fazerem exposições sobre esses artistas, o que, julgo, seria interessante para muita gente.
Isto não significa que Paris não tenha sido um espaço relevante para Wilde ou que Wilde não tenha sido importante para Paris. Francófilo, como muitos dos intelectuais britânicos da sua geração, e entusiasta de Stendhal, Balzac, Baudelaire e dos pintores Impressionistas, Wilde visitou Paris várias vezes ao longo da sua vida e por três vezes ali viveu durante períodos de tempo consideráveis: em 1883, em 1891 e de 1898 até à sua morte.
Paris de Wilde, Wilde de Paris
Em 1883, Wilde era, quase paradoxalmente, um jovem com pouca obra publicada que acabara de fazer uma tour de conferências sobre arte nos Estados Unidos da América e que pretendia fazer-se conhecer em Paris. Em 1891, Wilde era somente, segundo o jornal L’Echo de Paris, quer no meio literário quer no meio social, “o grande evento” do ano. Em 1898, Wilde era um ex-presidiário falido que todos fingiam não conhecer sempre que com ele se cruzavam na rua. A relação de Wilde com Paris não pode, por isso, ser reduzida a uma descrição simples e lisonjeira para ambas as partes etiquetada pela expressão “admiração mútua”.
Wilde começou por ser recebido em Paris por artistas que admirava, como o poeta Verlaine, o pintor Pissarro, a actriz Sarah Bernhardt, e acabou por ser desprezado por artistas menores que a ele não queriam ser associados, tendo pelo meio sido desejado em todos os salões aristocráticos, venerado por André Gide e Pierre Louÿs, e de, alegadamente, se ter escapado a meio de um jantar em casa do jovem Marcel Proust devido ao facto de não ser capaz de suportar a fealdade da casa do escritor francês.
Paris foi o sítio onde banquetes faustosos foram dados em sua honra e onde Wilde, financeiramente falido, pediu a desconhecidos sentados em esplanadas para lhe pagarem um copo de qualquer coisa (quando estes aceitavam fazê-lo, Wilde acabava quase sempre por pedir a bebida mais cara). Em Paris, fora do campo estritamente social, Wilde conheceu algumas das ideias características do movimento decadentista que fecundariam uma boa parte da sua obra (pense-se, por exemplo, na importância do romance À Rebours de Huysmans para a concepção de O Retrato de Dorian Gray), privou com Mallarmé e com ele discutiu, nas famosas reuniões de quarta-feira em casa do poeta francês, a ideia da arte pela arte que lhes era querida, deu lições sobre a poesia de Swinburne ao respeitado Edmond de Goncourt durante uma polémica jornalística e assistiu com um misto de tristeza e orgulho ao interesse arrebatado que o seu poema “A Balada do Cárcere de Reading” suscitou de ambos os lados do Canal da Mancha, uma vez que, apesar de ser louvado pela crítica e de ser um sucesso de vendas, o poema aparecia até à sua sétima edição como sendo da autoria de um tal C.3.3, código que significava Bloco C, Ala 3, cela 3, precisamente o espaço da cadeia de Reading onde Oscar Wilde cumprira algum do tempo da sua pena.
De tudo isto se pode concluir, sem margem para dúvidas, mas também sem margem para grandes extrapolações, que Paris foi importante para Wilde e que Wilde foi importante para Paris. O que mais se pode desejar é que esta exposição que agora se inicia também o seja para Paris e que depois o seja noutras localidades, pois não há melhor pretexto para conhecer Oscar Wilde do que o próprio pretexto de conhecer Oscar Wilde.