Tomás Bastos já estava encharcado quando chegou ao púlpito falar ao seu batalhão, na abertura do ano letivo do Colégio Militar. Com o Presidente da República a assistir à cerimónia, um grupo de largas dezenas de crianças e jovens, entre os 10 e os 18 anos, ouviam o seu comandante, finalista, sob a chuva intensa que caía no átrio interior da instituição. “Durante 213 anos de história desta tão nobre instituição, operaram-se várias mudanças, sendo a última talvez uma das mais radicais”.
A passagem, logo nas primeiras linhas da intervenção do jovem estudante, trazem à memória a polémica em que o Colégio Militar se viu envolvido. Em abril, o então diretor admitia ao Observador situações de discriminação a alunos homossexuais.Nas situações de afetos [homossexuais], obviamente não podemos fazer transferência de escola. Falamos com o encarregado de educação para que percebam que o filho acabou de perder espaço de convivência interna e a partir daí vai ter grandes dificuldades de relacionamento com os pares. Porque é o que se verifica. São excluídos”, afirmou então o tenente-coronel.
Dias depois, alegando “razões pessoais”, o Chefe do Estado-maior do Exército demitiu-se. Dois meses mais tarde, tanto o tenente-coronel António Grilo, diretor do colégio, como o Diretor de Educação e Doutrina do Exército, o major-general Cóias Ferreira, foram transferidos para novas funções.
O discurso mudou bastante em poucos meses. O atual Diretor de Educação e Doutrina do Exército considera que o discurso do nº 192 do Colégio Militar (CM) nada têm que ver com o caso e, agora, o major-general João Reis, até considera de mero “bom senso” que os responsáveis do Colégio Militar atuem quando lhes seja comunicada uma situação de discriminação de alunos em função da sua orientação sexual.
Se, porventura, se detetar que começa a iniciar-se uma tendência – e até agora não temos conhecimento disso – de qualquer forma de discriminação, então atuaremos e aí haverá formação específica, [aplicar-se-ão] medidas adequadas a essa matéria, mas isso é até uma questão de bom senso”, diz o responsável do Exército ao Observador.
Este ano entrou em vigor o novo regulamento do CM, e para a versão atualizada do documento foi já feita a transposição da “lei a montante” (da própria Constituição, leia-se). Uma medida que serviu para reforçar o combate à discriminação dos alunos internos da instituição, diz o major-general João Reis, sublinhando que a versão anterior já previa medidas a adotar em casos semelhantes – apesar das declarações do anterior subdiretor, que o Diretor de Educação e Doutrina apenas “ouve” e “regista”.
Mas o Exército não se limitou a uma atualização do léxico do regulamento interno do CM – que agora proíbe, com todas as palavras, situações de discriminação entre alunos “em razão da raça, saúde, sexo, orientação sexual, idade, identidade de género, condição económica, cultural, social ou outras convicções pessoais”.
“Ter uma vida como a de qualquer outro”
Numa iniciativa sem registo de precedentes, o próprio major-general foi ao Colégio Militar (e aos pupilos do Exército) pedir aos graduados que estejam “mais atentos a situações que possam ocorrer, desta ou doutra natureza porque eles estão 24 sobre 24 horas uns com os outros” e são eles os primeiros a detetar quando um aluno está a ser posto de parte pelos colegas de curso.
Fora essa intervenção “pouco usual” na primeira pessoa, “não houve uma formação específica” para sensibilizar alunos e corpo docente para a “defesa dos valores do colégio e do cumprimento das normas e código de honra” da instituição. “Essa formação já existe nos planos de formação e nas ações desenvolvidas no colégio”, mas “isso não foi suficientemente explorado”, lamenta o major-general João Reis.
O responsável do Exército insiste que as regras existem e que os diretores do Colégio Militar e dos Pupilos do Exército foram informados de que devem seguir as “orientações” estabelecidos. Mas, na prática, qual o destino de um aluno que revele uma orientação homossexual?
“A consequência para o aluno ou aluno que a assume — não sei se algum que tenha determinada orientação a publicita ou, pelo menos, dá conhecimento ou não…”, começa por dizer o Diretor de Edução e Doutrina ao Observador. Mas, “se dá…” — aqui, o major-general demora-se alguns segundos, enquanto pesa as palavras que vai escolher para a resposta — ,”o diretor, os graduados ficam a saber que tem aquela orientação sexual. E daí? O que é que está definido? Terá uma vida no colégio como tem qualquer outro aluno ou aluna“, garante o responsável do Exército. Se houver “alguma reação diferente” à que existe em relação a outros alunos, “e for contrária ao que está definido, atuaremos”.
Raparigas estão “totalmente integradas”
João Rei considera que a “mudança radical” a que o jovem Tomás Basto se referia perante os seus pares prende-se com a entrada de alunas no Colégio Militar. Uma inovação com dois anos e um corte radical com os 210 anos anteriores de vida da instituição.
O Diretor de Educação do Exército admite que haja “opiniões diferentes” — nomeadamente, a de chefia militares que se opõem ao regime de internato de raparigas no Colégio Militar e que preferiam que o Instituto de Odivelas continuasse a ser uma entidade autónoma, exclusiva à formação de raparigas –, mas considera que a junção das duas instituições “é um caso de sucesso”.
“Há listas de espera para o internato feminino, as raparigas estão perfeitamente integradas. Aliás, há já algumas que são graduadas e estão a comandar os pelotões. É um exemplo a dar à sociedade como numa escola tradicionalmente masculina em dois anos há uma integração total mesmo no internato”, considera o major-general João Reis.