“Culturalmente nunca estivemos bem, a crise recente não ajudou e não estamos a conseguir recuperar”, disse esta sexta-feira o ator Nuno Lopes, assim resumindo algumas das razões que terão levado ao encerramento do Teatro da Cornucópia, anunciado há poucos dias.
“Ouço falar de crise nas artes desde que comecei a representar, em 1996. Parece-me que o fim da Cornucópia é mais um sintoma de um país que não protege os seus artistas e a sua cultura e que sobrevive muito mais de uma cultura exterior a Portugal”, sublinhou o ator, em conversa telefónica.
O primeiro espetáculo de Nuno Lopes na Cornucópia foi “Os Sete Infantes (Lenda dos Sete Infantes de Lara)”, com apresentações no Teatro do Bairro em junho de 1997.
“É a minha casa, foi ali que aprendi a ser ator, nessa altura ainda estava no primeiro ano do Conservatório. Durante muito tempo, fiz parte de todos os espetáculos da companhia, foi ali que aprendi a saber retirar um personagem de um texto, mas acima de tudo aprendi uma ética e uma moral profissional que ainda hoje me influenciam.”
Acerca do legado da companhia fundada em 1973 por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, Nuno Lopes destaca a “maneira de olhar o mundo e a atenção ao que se passa na sociedade através de grandes textos, alguns antiquíssimos”.
“A Cornucópia era uma casa de pensamento, com seriedade, um sítio onde se aprendia e se transmitia que estar em palco é uma responsabilidade política e social. Centenas de atores passaram por lá, não acredito que alguém não tenha ficado marcado por essa experiência. Trabalhava-se verdadeiramente em conjunto, como deveria ser sempre no teatro, de uma forma familiar e amigável, mas muito séria. Aprendemos que estar no palco é uma maneira política de estar na vida”, sublinha Nuno Lopes.
Em entrevista publicada esta sexta-feira no Observador, Luís Miguel Cintra, responsável pela companhia lisboeta, justificou o fecho com a falta de subsídios do Estado e a sua consequente recusa em “transformar em estética algo que é apenas precariedade, política de poupança e de gastos”.
Jorge Salavisa mostrou-se “chocado” com a notícia, mas afirma serem compreensíveis as razões de Luís Miguel Cintra.
“Falei com ele, sei que há uma série de circunstâncias, incluindo o desgaste com as burocracias, certas incompreensões da tutela e das pessoas que têm os destinos do país em termos culturais, mas é também a idade que não perdoa. O Luís Miguel é uma pessoa muito honesta e consciente, com certos problemas de saúde, e esse fator pessoal também conta. Temos de compreender a escolha dele, é um homem extremamente inteligente.”
Antigo diretor do Ballet Gulbenkian, da Companhia Nacional de Bailado, do Teatro Municipal São Luiz e do Teatro Nacional de São Carlos, Jorge Salavisa programou dois espetáculos da Cornucópia: “A Tragédia de Júlio César”, de Shakespeare, em 2007, e “A Cidade”, colagem de textos de Aristófanes, em 2010.
Além de expressar “grande admiração” pelo trabalho de Luís Miguel Cintra e de Cristina Reis, cenógrafa e figurinista da Cornucópia desde 1975, Salavisa recordou os espetáculos “absolutamente memoráveis e rigorosos”, “muito importantes” para a sua formação como espectador e programador. “É toda uma época que se acaba”, lamentou.
Em declaração escrita enviada através do gabinete de imprensa, o Ministério da Cultura disse que tem “acompanhado de perto” a situação do Teatro da Cornucópia e “lamenta o encerramento” de uma estrutura de teatro que classifica como “das mais importantes da história do teatro português”.
O ministério de Luís Filipe Castro Mendes disse também que a Cornucópia “foi e continua a ser” subsidiada pela Direção Geral da Artes, mas não comentou o montante do subsídio.
Em relação ao imóvel ocupado pela Cornucópia, o número 1-A da Rua Tenente Raul Cascais, entre o Rato e o Príncipe Real, o ministério disse tratar-se de “património privado”.
Ainda assim, o governo “assegurará o aluguer do edifício por um período de mais um ano, de modo a que o processo de encerramento, e todos os trabalhos que daí decorrem, seja realizado nas devidas condições”.
O encenador Filipe La Féria classificou o encerramento como “uma perda irreparável e inaceitável”. “A Cornucópia é uma das companhias mais importantes da historia do teatro português. O encerramento é compreensível, pela falta de financiamento, mas também digno, pela fase da vida que o Luís Miguel Cintra está a atravessar. Mas chegarmos a este ponto representa o falhanço de qualquer política cultural. Espero que o governo possa ainda tomar medidas que impeçam o encerramento”, defendeu.
Filipe La Féria esteve no início da Cornucópia e participou como ator no primeiro espetáculo da companhia, “O Misantropo”, de Molière, em outubro de 1973, no Teatro Laura Alves, ao lado de Cintra, Jorge Silva Melo, Glicínia Quartin, Carlos Fernando, Raquel Maria, Orlando Costa, Carlos Fernando, Luís Lima Barreto e Dalila Rocha. Entrou também na peça “A Ilha dos Escravos e A Herança”, de Marivaux, em março de 1974, no Capitólio.
“No início, a companhia teve muita dificuldade em se afirmar, também por causa da falta de meios, só muito mais tarde é que isso aconteceu. Mas já então o Luís Miguel Cintra era uma pessoa de enorme talento, foi talvez um dos maiores atores com quem tive a sorte de contracenar”, classificou La Féria.
“A seriedade é a principal herança que a Cornucópia nos deixa. Neste momento, põe-se a economia acima de tudo, acho que uma política cultural digna desse nome não pode funcionar assim, e estou à vontade para falar porque não tenho subsídios do Estado e nunca tive. Parece-me muito cruel que a companhia não esteja a ser apoiada. Gostava que o primeiro-ministro, que é um homem de cultura, um dos raros que vão mesmo ver teatro, não deixe acontecer este desfecho monstruoso”, afirmou La Féria.
Opinião mais otimista foi expressa pelo maestro João Paulo Santos, diretor do Gabinete de Estudos Musicais e Dramaturgia do Teatro Nacional de São Carlos, cuja colaboração com a Cornucópia começou em meados dos anos 90 e se prolongou até hoje. “Já se esperava que isto acontecesse, mas durante muito tempo não se sabia que forma iria tomar. De repente, tomou a forma de lançamento de um livro e um recital”, explicou João Paulo Santos.
Referia-se ao encontro marcado para sábado, às 16h00, na sede da Cornucópia, no qual será apresentado o segundo volume do catálogo com todas as produções da companhia, desta vez as de 2001 a 2016, havendo espaço para um recital de entrada livre com textos do poeta francês Guillaume Apollinaire
Na ocasião será ainda lançado o DVD com a versão filmada por Joaquim Pinto e Nuno Leonel do espetáculo “Fim de Citação”, de 2010.
[excerto do filme “Fim de Citação”]
João Paulo Santos notou que o facto de a companhia fechar não significa que Luís Miguel Cintra se retire da atividade. “Não deixará de encenar se houver oportunidades, os artistas não desaparecem por desaparecer uma companhia.”
A última colaboração entre o maestro e Cintra foi na ópera “Dialogues des Carmélites”, de Francis Poulenc, apresentada em São Carlos em Fevereiro deste ano. “Ao fazer um balanço iria dizer banalidades, prefiro dizer apenas que a Cornucópia teve uma atividade muito marcante e não será possível falar de teatro na segunda metade do século XX em Portugal sem se falar desta companhia.”