“A minha editora está-me sempre a dizer, tens de fazer já um disco porque agora é que está a dar. Quer dizer, desde domingo, dizem que se calhar é melhor esperar um bocadinho”. E ao final da quinta canção estava arrumado de forma singela o elefante gasoso que se plantou no meio da sala desde que Salvador Sobral participou na gala de solidadariedade Juntos Por Todos. O leitor mais atento perguntar-se-á “Domingo? Mas a gala foi na terça-feira”. Tudo bem, o próprio Salvador encarregou-se de revelar durante o concerto no Centro Cultural de Belém que as questões cronológicas não são o seu forte. Esta foi uma das muitas confissões ao longo de um espectáculo que lotou o Grande Auditório, o que fez com que o ambiente fosse curiosamente familiar, numa sala que tende mais para o solene. (Um concerto que se repete esta segunda feira, também às 21h00)
O mote para um ambiente distendido foi dado logo na mensagem da praxe que costumamos ouvir antes de um espectáculo. Foi o próprio Salvador a pedir ao público que desligasse os telemóveis, prometendo território livre para fotografias e vídeos no final do concerto, pedindo-lhe também que se emocionasse. Pela positiva ou pela negativa. A partir daí, o jazz tomou conta do palco, pois esse é o terreno em que o cantor se move com mais naturalidade. Basta conferir a formação da banda, constituída por Júlio Resende no piano, André Rosinha no contrabaixo e Bruno Pedroso na bateria. E é notável a forma como uma vitória na Eurovisão predispõe centenas de pessoas para um estilo musical de nicho, sobretudo quando pensamos em intérpretes nacionais.
Velhos, novos, homens, mulheres, avós e netos, pais e filhos, senhores de casaquinho pelos ombros, como quem vai à bica durante o horário de almoço na repartição, meninas de tote bag do Fringe tomando lugares na plateia. O público era manifestamente heterogéneo, o cardápio servido por Salvador idem. A espinha dorsal do concerto foi o álbum Excuse Me, de 2016, entre boleros, jazz vocal e versões de Dorival Caymmi, mas também foram mostradas canções novas (que farão parte do alinhamento do novo disco pelo qual a editora anda a rezar a todos os santinhos) e peças musicais a partir de Alexander Search, o projecto de inspiração pessoana que Salvador e Resende têm em conjunto.
Pelo meio, o tremendo gozo que o artista principal tira da passagem pelo palco. É manifesto o prazer com que Salvador encara as canções e o desempenho da banda, entre pulos, esgares, ademanes, air guitar, vocalizações ao lado, movimentos pendulares entre a penumbra e os holofotes (deixando espaço ao virtuosismo do trio, como se estivéssemos no bom e velho Hot Clube só que com menos fumo e melhor som), rasgos de trompete humano, chistes no intervalo entre malhas. A voz, cristalina e afinada, é de facto um instrumento e o entusiasmo do intérprete – sim, ele é um intérprete de gabarito e não tanto um compositor – ajudam a perceber porque é que o miúdo tem condições para agarrar o seu público pelos colarinhos durante mais tempo do que aquele que a glória efémera da Eurovisão lhe posa emprestar.
É que a quarta parede que o teatro tem vindo a partir ali nem sequer foi levantada. Como se estivéssemos a assitir a um monumental ensaio na presença de Salvador e amigos, durante o qual o frontman desfruta de cada nota, cada acorde, partilhando o entusiasmo com toda a gente. A isso juntam-se as tiradas desconcertantes que fazem lembrar o instinto performático de um Reininho ou um JP Simões, descontando a prosápia filosófica, e também o talento para alternar de forma equilibrada entre o espírito e o ritmo de uma jam session e os momentos de candura. Nesse aspecto, destaque para a interpretação de “Nem eu”, canção do álbum de estreia, cosida à belíssima “Epigram – I love my dreams”, esta com o dedo de Fernando Pessoa.
Ao fim de cerca de duas horas de concerto, e depois de amarmos pelos dois, de percebermos que a auto-consciência é uma arma e que até o pai do artista pode ser abertamente apelidado de sacana por ter abandonado a sala por momentos, o epílogo fez-se ao som de “A case of you”, de Joni Mitchell. Porque o primo Zé lho exigiu, claro. E porque era necessário terminar em beleza uma prestação que lhe saiu das entranhas. Calma, não é isso que estão a pensar.
Pedro Vieira é pivô de televisão e ilustrador relutante.