O Ministério Público arquivou o processo que envolvia o antigo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, e o ex-Secretário de Estado, Miguel Relvas, por suspeitas de corrupção, abuso de poder, participação económica e prevaricação através da empresa Tecnoforma. Os investigadores também consideraram não ter existido crime na atividade da empresa — alvo de um processo da OLAF (Organismo Europeu de Luta Antifraude). Mas este considerou existirem fortes indícios de fraude na obtenção de financiamentos europeus.
O caso foi arquivado num despacho assinado a 4 de setembro, quase cinco anos após ter começado a investigação, pelo procurador Rui Correia Marques e ao qual o Observador teve acesso. O inquérito foi aberto por ordem da então diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal ( DCIAP), Cândida Almeida, depois de várias notícias na comunicação social darem conta de alegados favorecimentos à empresa Tecnoforma, ligada a Passos Coelho. Os crimes teriam acontecido quando Miguel Relvas era secretário de Estado da Administração Local, entre 2002 e 2004, mas o inquérito só foi aberto em 2012, era Passos Coelho primeiro-ministro.
De acordo com o Ministério Público, não foram encontradas provas de que a empresa ligada a Passos Coelho tenha sido beneficiada na aquisição de fundos comunitários para formações. Não se provou ainda ter havido pagamentos de qualquer contrapartida. Já o crime de abuso de poder nem sequer foi tido em conta porque prescreveu.
Que notícias é que motivaram o inquérito?
Em 2012 começaram a ser publicadas diversas notícias que davam conta de várias ações de formação realizadas pela empresa Tecnoforma, onde Passos Coelho foi consultor e administrador, em aeródromos da região Centro. Estas formações eram subsidiadas por fundos comunitários no âmbito do Programa Foral.
A agravar as suspeitas de favorecimento surgiram as declarações da então vereadora da câmara de Lisboa, Helena Roseta, num programa televisivo em que afirmou que enquanto bastonária da Ordem dos Arquitetos fora contactada pelo então secretário de Estado da Administração Local, Miguel Relvas. Este teria proposto uma parceria “com vista à promoção de ações de formação para arquitetos das autarquias, com recurso a verbas do programa Foral”, lê-se no despacho de arquivamento. Mas Relvas impunha, no entanto, uma condição: “A contratação, para o efeito, da empresa de Pedro Passos Coelho”.
As notícias davam ainda conta de um contrato suspeito entre a Tecnoforma e a Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE), à data dirigida por Armando Vieira, para formações nas cinco regiões: Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve.
Que crimes podiam estar em causa?
Segundo o Ministério Público, podiam estar em causa os crimes de corrupção ativa, passiva, abuso de poder, participação económica em negócio, prevaricação, fraude na obtenção de subsídio e desvio de subsídio.
O procurador dividiu a investigação em dois grandes alvos. Por um lado interessava investigar eventuais favorecimentos políticos à Tecnoforma, o que “abarcava as ações de formação desenvolvidas” por esta no âmbito do Programa Foral, incluindo os contratos feitos em parceria com a ANAFRE. O segundo foco da investigação seria a “eventual má utilização de fundos comunitários pela Tecnoforma no desenvolvimento dessas ações de formação”. O caso foi considerado de “especial complexidade” por envolver ex-governantes e foi declarado o segredo de justiça.
De fora desta investigação, apesar do crime também ser abordado nas notícias vindas a público, ficaram as ações de formação de pessoal para exercer funções em Aeródromos em Heliportos, que estavam a ser investigadas num outro processo em Coimbra.
Que testemunhas foram ouvidas e o que disseram?
O procurador do Ministério Público ouviu 17 testemunhas, repetiu algumas inquirições e pediu ao OLAF para investigar a Tecnoforma e todos os subsídios que recebeu. Já no final de 2016, quatro anos após aberto o inquérito e temendo que alguns dos crimes prescrevessem, pediu ao juiz de instrução Carlos Alexandre que ordenasse buscas não domiciliárias às instalações da empresa. A PJ recolheu vários documentos. Nenhum foi suficiente para provar os crimes em investigação.
Durante a investigação, Helena Roseta reiterou que Miguel Relvas lhe tinha proposto algumas ações de formação aos arquitetos inscritos na Ordem, com a condição de ser a Tecnoforma a promover essas formações. O que lhe causou “estranheza”, disse. Ainda assim, a então Bastonária pediu a uma funcionária da Ordem que recebesse os representantes da tal empresa.
Foi a arquiteta Leonor Gomes quem recebeu Pedro Passos Coelho. Ao Ministério Público, a arquiteta mostrou alguns documentos da reunião e recordou que Passos Coelho se apresentou como consultor da Tecnoforma e estava acompanhado de Luís Brito como representante da empresa. O encontro aconteceu em janeiro de 2004. Os dois perguntaram quais seriam as necessidades de formação destes arquitetos e Leonor Gomes terminou o encontro com a promessa de que iria averiguar que tipo de formação poderia ser adquirida através da Tecnoforma, com o Programa Foral. Passos Coelho assegurou, na altura, que a Ordem não teria qualquer despesa, essas seriam asseguradas pelos fundos comunitários.
O que é a Tecnoforma?
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A Tecnoforma era uma empresa dedicada à consultoria e formação profissional, cujos sócios eram Sérgio Porfírio e Manuel Cardoso de Castro. Anos depois de iniciar atividade chegou a mudar os seus serviços para outra empresa denominada “Tecnoforma II – Consultadoria e Recursos Humanos Lda”. Passos Coelho terá sido consultor entre 2000 e 2004 e entre 2005 e 01-05-2007 seu administrador por procuração. Entre 2000 e 2009 a empresa terá arrecadado 4,1 milhões de euros com o programa Foral, mais de 3 milhões foram fundos comunitários, o restante teria vindo do Estado português.
Sobre este encontro, o Ministério Público não ouviu Passos Coelho, mas falou com Luís Brito, que admitiu ter conhecido Miguel Relvas numa ocasião, embora ele fosse alvo de “conversas de corredor” frequentemente. Ainda assim, o funcionário da Tecnoforma afirmou que Relvas não teria tido qualquer influência nos contratos da empresa.
Já a secretária pessoal de Miguel Relvas, que trabalhava com ele desde 1982, explicou que os encontros entre Passos Coelho e Miguel Relvas, quando este era secretário de Estado, eram muito frequentes. E que essas reuniões se relacionavam com a empresa de Passos Coelho, que ela veio a saber mais tarde tratar-se da Tecnoforma, lê-se no despacho. Uma versão não contada de igual forma pelo próprio Miguel Relvas, que se ofereceu para prestar declarações ainda antes de ser notificado para isso. Relvas disse saber que Passos Coelho estava ligado à empresa Fomentinvest, mas não à Tecnoforma. Uma contradição que o Ministério Público considerou: “É pois de admitir como provável que Miguel Relvas soubesse a partir desse momento que a Tecnoforma era representada por Passos Coelho”. Mas isso não comprova que Relvas tenha proposto a Roseta contratar a “empresa do dr. Pedro Passos Coelho” ou a “Tecnoforma”, o que à luz da lei faz muita diferença, lê-se.
Assim, diz o Ministério Público, não há crimes de corrupção ativa ou passiva, porque não se provou existirem promessas ou pagamentos de contrapartidas caso houvesse a contratação da empresa. Portanto, não se provou qualquer acordo entre Passos Coelho e Relvas para favorecer a Tecnoforma.
Os investigadores concluíram ainda que a intervenção da Tecnoforma nestes negócios surgiu depois de o “Núcleo de Coordenação do Programa Foral ter definido uma estratégia de dinamização desse Programa que levou à concretização de uma ação de divulgação do mesmo, o que terá ocorrido em 2003”. Era preciso promover o Programa Foral que à data se encontrava adormecido e a Tecnoforma foi uma das muitas empresas que respondeu a esse apelo.
Também foi assim que a ANAFRE terá contactado com a Tecnoforma em 2004, uma empresa que alguns funcionários indicaram como sendo a ideal para a formação que lhes faltava. O então presidente, Armando Vieira, disse ao MP que, nessa altura, as suas relações com Relvas até era algo “tensas”, porque o governante “desvalorizava” o papel da ANAFRE e das freguesias, e que nunca ouvira falar de Passos Coelho. Só em 2006, quando a ANAFRE precisou de fazer um ponto de situação sobre as formações encontrou Passos Coelho como administrador (Passos Coelho chegou a ser administrador por procuração). Logo os investigadores consideraram não ter havido qualquer favorecimento.
E o relatório da OLAF que diz que há fraude?
O Ministério Público, através do DCIAP, pediu ao Organismo Europeu de Luta AntiFraude, da Comissão Europeia, que analisasse a atividade da Tecnoforma e o que fez com os mais de 3 milhões de euros em fundos comunitários recebidos. A OLAF detetou indícios de diversas irregularidades desde imputação excessiva de custos com contabilidade, nos pagamentos de salários de administradores, despesas com prestações de serviço, gastos com carros e rendas de imóveis, e até falsificação de recibos de pagamentos e elaboração de contabilidade fraudulenta para permitir à Tecnoforma aceder fraudulentamente aos Fundos Comunitários, em conluio coma a empresa Oesteconsult, lê-se no despacho de arquivamento.
Correspondência violada?
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O Relatório da OLAF foi enviado ao DCIAP em junho de 2015, mas chegou às mãos do procurador titular do processo, Rui Correia Marques, aberto. Na altura o magistrado ordenou que se investigasse um possível crime de violação de correspondência. “Apesar de se encontrar selado em saco de plástico, se encontra aberto ao longo de todo o seu comprimento, permitindo desse modo o visionamento do seu conteúdo”, descreve o procurador no processo. Os funcionários dos Correios foram inquiridos para apurar quem poderia ter aberto o invólucro do documento vindo da Bélgica, mas concluiu-se que teria sido aberto acidentalmente pelo caminho, uma vez que pesava mais de quilo e meio e não trazia qualquer proteção especial.
Perante estas conclusões, o Ministério Público nomeou um técnico da Unidade de Certificação da Agência para o Desenvolvimento e Coesão para analisar todos estes dados. O objetivo era saber de estavam perante crimes de Fraude na obtenção de Subsídio. O técnico em causa encontrou explicações para todas as despesas. E, segundo o despacho do Ministério Público, “não é possível concluir pela verificação concreta de qualquer ilícito, muito menos de natureza criminal”.