Faça o teste. É provável que tenha um ou, mesmo, dois canais de informação financeira na sua televisão em casa. Além da Bloomberg, talvez tenha a CNBC, duas norte-americanas. E mesmo que não tenha o hábito ver estes canais, não fique surpreendido, por estes dias, se em vez de estarem a falar de ações, petróleo, taxas de juro e política económica estiverem a falar de bitcoin e das outras moedas digitais (mas, sobretudo, da bitcoin). Este é um sinal claro de que a subida vertiginosa da cotação da bitcoin está a ser acompanhada com interesse por parte das pessoas (os telespectadores) e por estes canais financeiros. Mas a “febre” vai passar e, ainda que a tecnologia — a blockchain — seja promissora, a bitcoin não irá longe e voltará a ser o “instrumento de nicho” que foi nos seus primeiros anos. Esta é, pelo menos, a opinião de um economista do gigante bancário holandês ING.
Geeks (entusiastas das novas tecnologias), pessoas obcecadas com a privacidade, pessoas com medo de episódios de hiper-inflação (frequentes na História mundial e mesmo na actualidade) e pessoas interessadas em contornar os bancos “por razões ideológicas ou criminosas”. A bitcoin tem boas probabilidades de continuar a ser fascinante — ou, no mínimo, útil — para estas pessoas. Mas Teunis Brosens, economista sénior do holandês ING, aposta que, no futuro, a moeda digital não irá muito mais longe do que isso e irá voltar a ser nada mais do que um “instrumento de nicho”.
Bitcoin chega à alta finança. Até onde irá a febre das moedas digitais?
Apesar de ser evidente que o investimento (em rigor, a aplicação de dinheiro) em bitcoin há muito começou a ser feita por aqueles que se podem considerar investidores de retalho, com pequenos montantes, Teunis Brosens acredita que essas decisões de investimento estão a ser tomadas maioritariamente como especulação e não pela utilização da moeda digital como forma de pagamento (agora ou no futuro minimamente próximo). Além da especulação, “a bitcoin tem pouco a oferecer ao público geral e voltará, provavelmente, a ser um instrumento de nicho para um grupo restrito de pessoas”.
Não é, de todo, fácil prever qual é o futuro da bitcoin ou, sequer, atribuir-lhe um valor potencial. Mas, num relatório enviado aos clientes, o ING decide “juntar-se à multidão de analistas que estão a observar características típicas de uma bolha” e dá seis razões que, por si ou no seu conjunto, tornam provável que a bitcoin não venha a ser mais do uma “bolha” especulativa e fracasse como meio de pagamentos mainstream. Saiba quais são.
A falta de regulação. Trunfo ou calcanhar de Aquiles?
Para já, pelo menos à superfície, a posição oficial é laissez-faire, laissez-passer. Mas os governos não andam distraídos e, à medida que o valor da bitcoin subiu, começaram a surgir declarações públicas que mostram que pode estar iminente algum tipo de regulação de uma moeda digital que tem, como atrativo principal, o facto de não ser regulada. O último a falar nisto foi o ministro das Finanças de França, Bruno Le Maire, que quer ver esta questão discutida na próxima reunião do G20, em abril.
Governos como o do Reino Unido e de outros países europeus estão preocupados com o eventual uso da bitcoin para atividades criminosas e evasão fiscal, segundo o The Guardian. Paradoxalmente, este é um problema que, a confirmar-se, não começou só quando a moeda digital disparou mais de 1.000% em poucos meses — a sua utilização para atividades ilícitas é antiga e bem documentada, embora os seus defensores considerem que reduzir a bitcoin a isso não é justo. Podem estar contados os dias do anonimato (que, na realidade, não é pleno) nas transações de bitcoin.
“Para que a bitcoin cresça e amadureça, precisa de ser trazida para o centro do espaço regulado, em vez de existir nas franjas como atualmente acontece”, diz o ING. Claro que isso irá implicar, com toda a certeza, que “as bolsas de bitcoin e outros prestadores de serviços tenham de promover práticas adequadas de segurança e cumprimento das boas práticas de conhecer o seu cliente”, para evitar a utilização das moedas digitais para financiar crimes, branqueamento de capitais e, até, terrorismo.
Bitcoin não tem intermediários? Não será bem assim
Não há um banco central, não há bancos, não há empresas de cartões de crédito — “ninguém se mete no meio, entre ti e a pessoa ou entidade a quem queres pagar alguma coisa ou transferir dinheiro”. Este é um dos argumentos mais comuns dos entusiastas das moedas digitais como a bitcoin. Mas, na realidade, também não é bem assim. As bolsas de bitcoins cobram comissões significativas nas transações e conversões envolvendo moedas digitais e um negócio que floresceu nos últimos anos é a criação de “carteiras” virtuais onde as pessoas guardam os registos sobre as bitcoins que detêm, o que é o mesmo que dizer “onde guardam as bitcoins que têm“.
O ING recorda um estudo que propõe que um quinto das bitcoins em circulação não estão, nesta altura, realmente em circulação. Perderam-se os registos, discos rígidos queimaram, houve erros nas transferências, pessoas morreram e os registos e passwords desapareceram para sempre. Enquanto intermediários financeiros, um dos papéis dos bancos é gerir este tipo de situações, prevenir o roubo e certificar-se que as pessoas não perdem o acesso ao dinheiro (seu ou de alguém de quem são herdeiros).
A realidade é que, como nota o banco holandês, a maior parte das pessoas — excetuando os tais geeks e criminosos — não querem ter o trabalho de guardar os seus registos de bitcoins em papéis em cofres, nem querem correr riscos potencialmente devastadores. Portanto, o ING conclui que imaginar um futuro para a bitcoin em que realmente não existem intermediários pode não ser totalmente realista. Daí que, se houver intermediários, haverá (mais) comissões — portanto, em que é que isso é diferente da banca tradicional?
Qual é, realmente, o potencial da bitcoin?
Um exemplo prático: vamos ao restaurante, almoçamos, no final pagamos com cartão de débito. O terminal de pagamentos vai validar, junto do banco, se temos dinheiro suficiente na conta para pagar a despesa. Pelo menos em teoria, com a bitcoin não é bem assim. “Quando pago com bitcoin, o terminal do retalhista não se limita a processar a minha transação, mas tem de participar na validação de todas as transações que estão a acontecer naquele momento, e registá-las”, explica o ING, acrescentando que isto cria uma grande quantidade de tráfego.
É claro que podem surgir intermediários que ajudem a processar estas transações, de forma a simplificar o processo. “Mas isso leva-nos, de novo, para o ponto anterior”, ironiza Teunis Brosens. Neste momento, segundo a informação do ING, o ecossistema da bitcoin é capaz de processar cerca de 7 transações por segundo — “para que a bitcoin venha a desempenhar um papel importante como sistema de pagamentos, a capacidade de gestão de transações tem de ser 100 vezes, ou mesmo 1000 vezes, superior a isto“.
Já existem relatos de atrasos no processamento de transações com bitcoins — várias horas à espera de ver uma transação concluída. Há serviços (pagos) que ajudam a que as transações se façam mais rapidamente, basicamente saltando para a “frente da fila”, mas esses custos só se justificam em montantes mais elevados, não para pagar uma refeição num restaurante.
Bitcoin. Valiosa sim, mas muito volátil
Este é um dos pontos mais importantes, diz o ING. Os defensores da bitcoin argumentam que à medida que a moeda digital se afirmar e se tornar mais mainstream, a volatilidade vai diminuir. E isso é crucial, porque “ter uma moeda que hoje nos compra um grande latte e, no dia seguinte, só nos compra uma bica, não é muito conveniente”. Para que a bitcoin funcione como meio de pagamento, “precisa de ser estável”, diz Teunis Brosens.
O exemplo do grande latte e da bica é ilustrativo, mas este é um problema ainda maior quando pensamos no mundo empresarial: “Uma moeda que tenha uma valorização ou desvalorização de 10% pode ser a diferença entre um ótimo lucro e um grave prejuízo, num piscar de olhos”, diz o ING, lembrando que a bitcoin tem registado enorme volatilidade ao longo dos anos, muito mais do que as moedas convencionais e do que o ouro (um ativo com o qual a bitcoin é frequentemente comparado).
“A bitcoin continua a ser uma forma de dinheiro que tem oferta fixa, na sua própria blockchain, sem que haja um banco central a gerir a quantidade de moeda e a estabilidade dos pares cambiais. Isto torna-a intrinsecamente propensa a ser volátil“, defende o economista do ING.
Sabe quanta energia se gasta a explorar novas bitcoins?
A forma como a bitcoin foi desenhada estabelecia que “achar” novas moedas seria cada vez mais difícil — no sentido de mais moroso, mais complexo e a precisar de cada vez maior poder computacional. Foi por isso que, a certa altura, houve gente a instalar supercomputadores em países ou regiões com eletricidade mais barata, para estarem 24 horas sobre 24 horas a trabalhar no código e a tentar extrair bitcoins.
Para os céticos da bitcoin, a questão energética será uma das mais prováveis razões para o colapso da moeda digital. Neste momento, estima-se que está a consumir-se eletricidade a um ritmo anualizado de 32 terawatt-hora em eletricidade com computadores ligados a tentar “extrair” bitcoin. Isso é muito ou pouco? Em Portugal inteiro, consomem-se por ano cerca de 47 terawatt-hora, segundo dados da Pordata relativos a 2015.
Na opinião do ING, este tipo de consumos energéticos são “indesejáveis e insustentáveis, desperdiçando eletricidade que podia ser utilizada em coisas mais úteis“.
Falta de organização leva a espontaneidade ou a balbúrdia?
Mais uma vez, o ING salienta que a falta de uma centralidade, uma entidade gestora, na bitcoin é, ao mesmo tempo, o grande atrativo e o calcanhar de Aquiles. É ténue a linha que separa a liberdade e a espontaneidade da balbúrdia e o ING acredita que a bitcoin vai acabar por sucumbir — ainda que outras criptomoedas possam ter mais sucesso neste campo.
Na bitcoin alguém definiu as regras de como novas moedas eram extraídas, mas falta quem garanta não só que o sistema funciona sem falhas mas, também, que é possível enquadrar inovações no sistema da bitcoin. Um exemplo prático: o que vai acontecer quando a revolucionária computação quântica for capaz de “quebrar” a criptografia da bitcoin? O que acontece ao “nosso dinheiro”?
Outro fator crucial é a aparente simplicidade que existe em copiar a tecnologia da bitcoin, não existindo quaisquer regimes de exclusividade nesta matéria. A moeda digital vem recomendada como dinheiro que nunca será inflacionado por nenhum governo ou banco central (porque o limite máximo é de 21 milhões de moedas), mas a realidade é que a proliferação de moedas digitais e de estirpes da bitcoin abonam pouco a favor dessa noção de que é algo limitado e impossível de replicar.
O ING admite que algumas moedas digitais — poucas — podem sair vitoriosas mas isso faz com que, no fundo, o que está em causa neste momento é uma aposta naquela (ou naquelas) que vai ter sucesso. Como na bolha das dotcom, a maior parte das empresas tecnológicas colapsaram, mas quem investiu na Amazon ou na Google certamente não ficou dececionado. Será que a bitcoin, que vale neste momento 17 mil dólares, vai ser a Google ou a Amazon, ou será que vai ser a Pets.com?
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