A Câmara de Lisboa deixará de dirigir o Teatro Municipal Maria Matos a partir de setembro do próximo ano e vai privatizar a gestão da sala, anunciou a vereadora da Cultura no último fim de semana. Criadores e produtores culturais têm dúvidas e os partidos da oposição coincidem na crítica, exceção feita ao PSD. O Bloco de Esquerda está coligado com o PS no executivo camarário mas já se mostrou contra. “Fator determinante” para a mudança foi a decisão de reabrir duas salas históricas de Lisboa, que passam a ser geridas pela Câmara, disse Catarina Vaz Pinto ao Observador.

O Teatro do Bairro Alto, na Rua Tenente Raul Cascais, acolheu até 2016 a companhia Teatro da Cornucópia e a partir de meados de 2018 vai herdar “toda a programação que estava até agora no Maria Matos e que era mais experimental ou de companhias emergentes, nas várias áreas performativas”, garantiu a vereadora.

Já o Teatro Luís de Camões, em Belém, “vai ter apenas a programação infantojuvenil do Maria Matos, uma componente que nos últimos anos cresceu imenso e ganhou notoriedade e qualidade”, referiu. O orçamento anual de cerca de 700 mil euros do Maria Matos é também transferido para estes dois equipamentos.

Na opinião de Rui Catalão, criador de artes performativas que o Maria Matos apresentou várias vezes nos últimos anos, a bondade da transferência da programação para o Teatro do Bairro Alto “dependerá da inteligência e flexibilidade do novo programador”. A sala da Rua Tenente Raul Cascais tem um “espaço tão limitado” que deverá ser visto pelos responsáveis como “base de trabalho, para complementar com outros espaços não convencionais”. De contrário, a medida será “o equivalente a uma guetização artística”, defende.

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A Academia de Produtores Culturais (APC), associação cultural lisboeta presidida pelo ator e produtor Miguel Abreu, a quem o Observador também pediu opinião, acha que é cedo para ter certezas. No caso do Teatro do Bairro Alto, a transferência “parece muito bem”, mas quanto ao Teatro Luís de Camões não há “tanta certeza sobre se o equipamento é adequado às funções artísticas desejadas”.

Catarina Vaz Pinto explicou ao Observador que a mudança no Maria Matos “não pode ser vista de forma isolada, mas como parte de um conjunto de alterações nos teatros municipais” da capital. Acrescentou:

“O Teatro do Bairro Alto é um espaço icónico, muito importante na memória afetiva dos lisboetas, e estava em risco de ver a sua função alterada, desde a saída da Cornucópia. Estava em risco de deixar de ser uma sala de espetáculos e passar a ter escritórios. O Teatro do Bairro Alto pertence a uma entidade chamada Academia Portuguesa de Ballet e durante todo o tempo em que esteve a ser utilizado pela Cornucópia tinha um arrendamento através do Ministério da Cultura. Agora a Câmara vai arrendar a sala, através da EGEAC”, concretizou a vereadora.

A sala vai entrar em obras nos próximos meses, mas obras de pormenor: novo telhado, porta corta-fogo e outros aspetos obrigatórios por lei. O concurso para a direção artística abre no início do novo ano. Quanto ao Teatro Luís de Camões, em obras até ao fim deste mês, abrirá no primeiro semestre de 2018, com direção artística por cinco anos da mesma equipa que no Maria Matos faz hoje a programação infantojuvenil.

Vereadora Catarina Vaz Pinto quer programação “de qualidade” e para o “grande público” no Maria Matos a partir de setembro de 2018

O futuro próximo do Maria Matos está traçado pelo executivo camarário. Mantém-se até ao verão de 2018 sob gestão da EGEAC, até porque há programação fechada até aí, mas já em janeiro a Câmara lança um concurso para atribuir a gestão artística a uma entidade privada. Estão definidos alguns dos requisitos a cumprir pelos concorrentes: “Programação ‘mainstream’ e de qualidade, produções com carreira longa [semanas ou meses em cartaz], espetáculos próprios ou acolhimentos e autossustentabilidade”, disse Catarina Vaz Pinto.

“Se falarmos em concessão do Maria Matos a privados parece que estamos a privatizar o equipamento, e não estamos, vamos arrendá-lo através de um concurso público que vai selecionar um projeto de programação”, afirmou. “A diversidade cultural da cidade também se faz através de uma programação de grande público.”

O vereador da CDU, Carlos Moura, lamenta que a Câmara não tenha apresentado oficialmente estas novidades antes de as comunicar à imprensa e lembra que “não constavam” do programa eleitoral do PS. “Não nos parece que a abertura de dois teatros, por importante que seja, possa substituir uma sala tão importante como o Maria Matos. A situação da gestão do Maria Matos estava estabilizada, este anúncio parece-nos uma completamente subversão do que deveria ser uma política cultural para a cidade”, diz Carlos Moura.

Da parte do CDS, o vereador João Gonçalves Pereira disse à agência Lusa que vai aguardar até conhecer oficialmente os detalhes, mas quer que “o exemplo do Capitólio não volte a repetir-se” — referindo-se à sala do Parque Mayer recentemente reaberta pela Câmara e entregue por concurso público à empresa Sons em Trânsito.

Esse mesmo modelo do Capitólio não choca a vereadora do PSD, Teresa Leal Coelho, que, ainda assim, considera prematuro avaliar o assunto.

“À partida, não temos nenhuma objeção à transferência de alguma programação infantil para o Teatro Luís de Camões”, diz a vereadora social-democrata. “Quanto à transferência da programação experimental, contemporânea, de dramaturgia moderna para o Teatro do Bairro Alto, programação deste tipo necessita de condições que o Maria Matos não oferece e que o Teatro do Bairro Alto garante, pelo que considero uma decisão racional.”

Ricardo Robles, do Bloco de Esquerda, reagiu através do Facebook: a proposta para o Maria Matos “é errada”, porque “não cabe a um equipamento público a função de oferecer um teatro de natureza comercial”, escreveu.

https://www.facebook.com/RicardoAmaralRobles/posts/209563206278160

Por detrás da decisão de concessionar o Maria Matos está, também, a ida para Culturgest de Mark Deputter, diretor artístico da sala durante oito anos, até setembro último. “É evidente que o Mark não vai fazer na Culturgest as mesmas escolhas que fazia no Maria Matos, mas levou com ele o programador de música e a programadora das conferências. Por isso, não vou querer que o Maria Matos tenha um um perfil parecido com o da Culturgest”, explicou a vereadora da Cultura.

Em rigor, Deputter quer na Culturgest alguns nomes que o público se habituou a ver no Maria Matos, como Marlene Monteiro Freitas ou a dupla Ana Borralho e João Galante, mas também irá mudar de rumo, com “grandes espetáculos criados por artistas consolidados e com obra feita, mas que ainda não têm um público totalmente formado”, como explicou ao Observador em entrevista recente.

No dizer da Academia de Produtores Culturais, “é uma evidência” que na última década “os teatros da cidade não atribuídos a companhias ou a grupos, o São Luiz e o Maria Matos, têm estado vocacionados para a apresentação de espetáculos de curtíssima carreira numa lógica de programação de festival e numa ótica de programador”. No caso concreto do Maria Matos, a EGEAC quis até agora “orientar o equipamento para uma estética e linguagem específica de acordo com um discurso programático de autor, o que é legítimo”. Ainda assim, entende a APC, isso “reduziu progressivamente a diversidade de públicos desse equipamento, afastando-o do imaginário coletivo da cidade.”

Rui Catalão acha “muito alarmante se não estiver a ser tomado em linha de conta” o projeto-programa Vizinhanças, criado por Deputter no Maria Matos e com duração até 2021.

“É um projeto quinquenal, que deu o primeiro passo já este ano, e preconizava uma ponte com os bairros da freguesia de Marvila. Dada a dimensão, o potencial social, cultural e artístico, a abertura a uma das zonas mais populosas, e empobrecidas da cidade, deixá-lo cair será um ato de negligência política, social e cultural”, afirma o criador. “No tenho informações sobre se está assegurada a sua continuação”.

O Observador perguntou por este projeto a Catarina Vaz Pinto. E pelo que acontecerá à ligação do Maria Matos a redes europeias de produção artística, como a House on Fire, financiada pela Comissão Europeia.

“Tudo isso é para manter, vai transitar para o Teatro do Bairro Alto, mas temos de ver cada caso, porque está a terminar o prazo de alguns desses compromissos”, disse a vereadora. “A inserção em redes nacionais e internacionais é muito relevante e uma das grandes apostas do novo mandato do pelouro da Cultura é a ligação com o território: descentralização com Marvila, Benfica ou a zona norte da cidade. Queremos relacionar os equipamentos culturais com esses territórios, ir até eles ou levar as pessoas aos equipamentos.”

A APC, de Miguel Abreu, foi criada em 1999 especificamente para executar um projeto de renovação nos teatros Maria Matos e São Luiz. O primeiro foi gerido pela APC entre 1999 e 2004, sem financiamento à programação por parte da autarquia e sem pagamento de renda – antes das grandes obras de 2005, quando a sala voltou à EGEAC e teve Diogo Infante como diretor artístico. Pode isso significar que a APC se perfila como candidata ao concurso público de 2018 para o Maria Matos? Talvez.

“Dependerá do caderno de encargos, da filosofia e bondade do concurso”, respondeu Miguel Abreu. “Algumas vezes concorremos para acompanhar por dentro os procedimentos dos concursos, as decisões do júri, enfim, para termos uma opinião fundamentada sobre a transparência dos concursos e compreendermos as entrelinhas do sistema.”

Quanto aos funcionários do Maria Matos, que segundo a vereadora foram informados das mudanças dias antes de sair a notícia, “vão ser integrados em outras estruturas municipais. “Podem ir para as duas novas salas, mas também para o São Luiz ou para o Cinema São Jorge, ou até para museus municipais. É um processo para fazer com tempo e no qual vamos ouvir as pessoas”, garantiu Catarina Vaz Pinto.

Entretanto, circula na internet uma petição pública que pede a continuação da gestão pública do Maria Matos.