“Somos diferentes, tá-se bem”. A confirmação é de Manuel Lourenço, mascarado como Primeira Dama quando faz canções, como nesta “Rua das Flores”, onde apesar da distâncias, está tudo certo, “que este mundo há de ficar só para nós”. A diferença é de 40 anos, de um lado o jovem indie, do outro a veterana pop Lena d’Água e uma canção que os uniu, que no final esquece os versos do compositor e começa nostálgica a flutuar, a confessar o óbvio sobre esta amizade extraordinária: “Perto de ti é onde eu quero estar”.

No vídeo de “Rua das Flores”, segundo single do último álbum de Manuel Lourenço, a transfiguração de Primeira Dama nos versos de Lena d’Água encontra um êxtase quando o cantor começa a rodopiar à beira mar, como se tivesse em 1981 num vídeo da RTP, só lhe falta um vestido branco ou a fita na cabeça. “A ideia do concerto só existiu porque fiz esta canção onde decidi apropriar-me de uma música da Lena”, diz-nos Manuel no terraço da Galeria Zé dos Bois, com expectativa para o concerto inédito deste sábado, dia 6, ao lado da ídolo dos anos 80, que sorri e nos garante que perto do Manuel é também onde ela quer estar. “O final da música, quando ele pega no ‘Perto de Ti’, fiquei tão contente quando ouvi isso”, confirma Lena ao Observador. “Ele perguntou depois: ‘Vê lá se não é uma ideia muito doida fazer este concerto?’ Eu disse ‘não é nada, bora fazer’”.

Quem passa nas traseiras da Galeria Zé dos Bois, à espreita na janela ao lado do palco, pode ficar com a ideia que este ensaio deve ser qualquer atividade extra curricular, estilo escola de rock à portuguesa, com a professora Lena a participar na atividade dos alunos. Porém, aqui dentro, na sala de aulas, reina um profissionalismo que desfaz as inseguranças de uma banda que se somarmos a idade dos integrantes pode não chegar aos sessenta de Lena, com Manuel sempre de régua na mão. “Meu, não inventem, já treinámos isto imensas vezes”. O delegado de turma consegue finalmente arranhar uma canção e Lena balança a cabeça e fecha os olhos com agrado, como quem diz “estes miúdos sabem o que fazem”.

“São sete beijos dos teus para me conquistar”

Lena solta a voz, a largar pelo ar a camisola de malha, num dia invernoso que a nossa maior cantora pop começa a ensolarar. “Esta música é a que está mais diferente, tem uma coisa hip hop, as outras tivemos mais respeito”, explica Manuel a comandar a caixa de ritmos. “Está muito fixe”, agradece Lena. Na terceira tentativa da faixa clássica do álbum Perto de Ti, a voz da banda Atlântida, sex symbol nacional, surge finalmente, a serpentear os braços, respondendo afirmativamente com as ancas à natural sincronia que existe entre estes dois amigos.

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“Se pudesse ter composto alguma música da Lena, seria mesmo ‘No fundo dos teus olhos d’água’, queria muito conseguir imaginar uma canção com este momento de ‘São sete beijos dos teus para me conquistar’”.

Perto de ti, produzido em 1981 por Robin Geoffrey Cable, e os singles bombásticos da mesma altura (“Vígaro cá, vígaro lá/Labirinto” e “Papalagui/Jardim Zoológico”) foram a diretriz escolhida pelo Primeira Dama para este concerto, o mesmo mapa que ajudou a montar o bem sucedido segundo disco do jovem lisboeta. “No primeiro disco foi quando comecei a levar isto de compor a sério”, explica, “e no segundo queria trazer uma linguagem muito mais pop, e a principal coisa portuguesa que ouvi para compor foi a Lena com a Banda Atlântida, o meu disco favorito”.

Apesar desta amizade ser recente — afinal, na perspetiva da carreira de Lena até o nascimento do Manuel é recente, como ela própria gosta de lembrar — os dois já vêm de longas correspondências de comentários no Facebook, “assim o puto a meter-se com a pop star”, diz Lena. E dão finalmente de caras um com outro num evento em que a cantora participa, em Lisboa, com a obrigatória reverência. O “puto” não saiu dali sem um monte de autógrafos. O convite chegou por telefone e agora estão lado a lado, como se sempre tivessem tocado juntos.

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“Aos 20 anos estava ainda nos Beatnicks”, conta sobre a banda progressiva lisboeta. “Era namorada do viola baixo, entrei na banda logo a seguir ao nascimento da minha filhota, só tocámos em palcos pequenos como este, tinha uma parte do repertório original em português, rock sinfónico, e tínhamos outra parte que era Rolling Stones, Genesis, pois tínhamos de cumprir três horas e tal de concerto”. Era tudo muito caseiro e lo-fi, antes do boom do rock português, assim como as gravações domésticas de Manuel com os companheiros que montaram este último disco homónimo, Filipe Sambado e Eduardo Vinhas, para a editora co-fundada pelo próprio compositor, a Xita Records.

Lena d’Água: “Nunca me armei em sex symbol, só que era muito gira”

“Mas a seguir apareceu, provavelmente, a melhor banda de sempre”, interrompe Manuel extasiado, a lembrar Salada de Frutas, das coisas mais orelhudas da nossa história. “Comigo só durou oito meses”, acrescenta Lena. “Mas foram os melhores oito meses!”, garante o fã. “E depois, quando a banda disse ao Luís Pedro (Luís Pedro Fonseca) que não queriam mais uma cantora, ele saiu comigo, e fiquei a ganhar, ele é que era o principal compositor”. O resultado desses primeiros anos foi a inspiração deste concerto, o Perto de Ti e os singles “Vígaro cá, vígaro lá” e “Papalagui”. “Aquilo era basicamente o Luís Pedro que fazia tudo”, conta ao Manuel, que responde:

“Imagino que sim, estas músicas… tudo encaixa na perfeição, na cabeça dele devia aparecer tudo montado, ao pormenor, isso é a verdadeira música pop, parece fácil, mas é quase impossível”.

“Papalagui, Papalagui, Papalagui”, grita Lena para a alegria da banda, que sorri de forma comprometedora. Como não sorrir face a esta ode a um líder samoano que “vive nas florestas que parecem querer tocar o céu”, aqui com um belo groove de anca para animar a pista. “É uma pena não estar cá o Luís Pedro, ele ia adorar”, desabafa a cantora, a recordar o compositor que morreu em 2014. “Mas está no coração”, garante Manuel, não deixando desanimar a festa. “Não consigo gostar mais de um filho de que de outro”, indica Lena sobre o reportório escolhido, “mas estou muito feliz, não tocava ‘Papalagui’ e ‘Jardim Zoológico’ há uns 20 anos”.

O Primeira Dama uiva e Lena atinge os agudos, quando “às tantas o macaco gritou”, no espetacular single new wave “Jardim Zoológico”, que é “anti-ecológico”, uma música de protesto ao nível de “Nuclear, Não Obrigado”. “Este é o tom original”, desespera Lena, “ah meu deus, porque é que é que eu disse sim?”. Estas canções continuam pegajosas e inescapáveis e por isso mesmo Manuel recupera-as agora para a sua geração, a tentar ganhar no processo alguma aprendizagem, para repetir a receita pop que usou em “Mariana”, aquela que ele já nem come “os pastéis da avó”, ou em “Rita”, que “é tão bonita”, um mantra de repetição que foi uma das grandes canções nacionais do ano passado.

“Era de mais porque tinha de ser de mais”

“São estas coisas que ficam na na memória”, garante Lena. “Podemos ter grandes produções, mas depois se não tens uma frase boa, uma melodia que fica cá dentro, se calhar ouviste a música aos cinco anos e aos trinta ela ainda continua a bailar na memória”. Para os dois, a chave da fórmula dos singles está mesmo nos anos 80, sejam portugueses ou norte-americanos. “Quem alimentou a magia da música pop estava nos anos 80, anos 80 é só magia”, reflete o miúdo. “As pessoas depois dizem, ‘os 80 eram too much, era de mais’, mas era a altura que era para ser de mais, era assim que se fazia, era para ser berrante, com cores que ferem os olhos”.

“Graças a pessoas como o Manuel, o Benjamim, o Severo, consigo sentir-me em casa quando ouço rádio”, acrescenta Lena. “Parece que deu tudo a volta e gostamos outra vez de cantar em português, melodias que podemos trautear na rua”.

“No carrocel da vida na cidade
Espero na bicha pelo autocarro, que tarda em chegar
Fumo cigarro atrás de cigarro, pra me controlar”

Outra inevitável de Perto de Ti, o “Carrocel da Vida na Cidade”, onde Manuel canta os refrões extasiado de auscultadores e estamos todos no quarto da infância, com ele a cantar a música favorita de olhos fechados. Não é o quarto do Primeira Dama, mas quase, é o Bairro Alto, centro da cidade, e a Lena que mora hoje na tranquilidade de A-dos-Ruivos, distrito de Leiria, não sente saudades de dar umas voltinhas? “Não sinto falta nenhuma da agitação, nada, agora tenho cães, sou avó, mesmo na altura das bandas, nunca fui muito de noites, tínhamos ensaios, viagens, depois dos concertos, arrumávamos as coisas e seguíamos para Lisboa, naquelas estradas jeitosas da altura”.

E Primeira Dama, que é empacotado no mesmo saco dos novos cantautores lisboetas, que exaltam a capital, aborrecidos na esquizofrenia cosmopolita.

“Gostava de ser mais como o Severo e o Éme, que cantam melhor sobre uma Lisboa de agora”, diz. “As poucas coisas que me saem é por escape inevitável, sobretudo destes quatro anos passados, que vivi mais o centro da cidade.”

“Vou cantarolar isto e depois apanhas o jeito”, sugere o Primeira Dama no final de ensaio, ligeiramente mais nervoso com o passo fatal. “Somos diferentes, tá-se bem”, canta, “que este mundo há de ficar só para nós”. Lena, a homenageada na canção, ouve atentamente, a banda escorre por toda a “Rua das Flores” e ao chegar ao final, os dois, separados por 40 anos, ficam perdidos de amor pela música, água a correr como um rio, a rolar na areia, corpos nus vestidos de luar. “Perto de ti”, cantam, “é onde eu quero estar”. “Ao pé de ti”, entreolham-se a sorrir, “sinto-me flutuar”.

Super Ballet com Primeira Dama & Lena D’Água, este sábado, dia 6, às 22h, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. Bilhetes a 10 euros.