Conhecemos várias histórias de escritores precoces, que antes dos 25 anos já tinham escrito obras primas: Rimbaud, Clarice Lispector, Thomas Mann, Sá Carneiro. Não conhecíamos, até novembro passado, a precocidade de Agustina Bessa-Luís. Podemos conhecê-la agora com a publicação do seu primeiro romance Deuses de Barro, escrito aos 19 anos, no fim do verão de 1942 e abandonado na casa do Douro até ser redescoberto pela filha, Mónica Baldaque, já depois da escritora ter adoecido.

A publicação de inéditos que os autores não quiseram ou não puderam publicar quando podiam opinar sobre o assunto tornou-se bastante controversa, em parte porque a maioria destas são obras de juvenilia e não acrescentam nada de novo, a não ser aos académicos. Porém, nada disto se aplica a Deuses de Barro.

Porque este não é um livro de uma principiante, é a continuação de um começo que não sabemos nem saberemos jamais situar. Não é ainda a genial escritora de A Sibila. Mas ler Deuses de Barro e pensar que foi escrito por uma rapariga de 19 anos é de ficar tão atordoado como quando se lê Perto do Coração Selvagem, que Clarice Lispector também escreveu aos 19. Sobretudo se pensarmos que a escritora só andou no liceu até ao que seria hoje o 9º ano, não tinha entre os seus pares pessoas literatas, que nesses anos vivia numa casa no campo, rodeada de tias velhas e silenciosas, que praticamente não tinha amigos da mesma idade e tinha apenas uma grande biblioteca.

Foi assim, solitária, rodeada de livros, do pesado silêncio das casas no campo que começou uma espécie de diálogo com Deus e, intuindo ou sabendo já dos abismos do mundo, escreveu numa carta à sua mãe: “Há mil anos em cima de mim e novecentos e noventa e nove são de desilusão”.

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“Deuses de Barro”, de Agustina Bessa-Luís (Relógio d’Água)

Nos quatro anos que viveu no Douro, entre os 15 e os 19 anos, a escritora escreveu três romances: Ídolo de Barro, Água da Contradição e Deuses de Barro. “Os livros foram abandonados nessa casa, Agustina não se esqueceu deles, mas achou que os tinha perdido. “Há uns anos, quando vendemos a casa do Douro e a esvaziámos, encontrei lá várias coisas, entre elas estava Deuses de Barro e aquilo que acreditamos ser Agua da Contradição“, conta Mónica Baldaque ao Observador.

“Este não é um livro que ela não quis publicar. Tanto quis que chegou a enviá-lo ao escritor Sousa Costa pedindo um prefácio. Este, penso que incapaz de compreender o livro e a forma como Deus é nele retratado, achou-o ‘iconoclasta’ e desaconselhou Agustina a tentar publicá-lo. Entretanto ela já estava a escrever outra coisa, deixa o Douro e desliga-se desse livro”, explica ainda a filha da escritora, que diz não haver qualquer razão para se pensar que a sua mãe ficaria desagradada com esta publicação.

“Neste livro estão já as ideias que Agustina vai desenvolver nos três livros seguintes e um olhar sobre o mundo dos Homens que será recorrente em toda a sua obra”, afirma Mónica Baldaque. Sobre o manuscrito de Deuses de Barro trabalhou nos últimos tempos de vida Alberto Luís, marido da escritora, que morreu em dezembro, sem ter podido ver o inédito publicado. “Fazer publicar este romance é como uma flor que eu e o meu pai queríamos oferecer a Agustina.”

“Que Deus é o teu, o vosso, o de toda essa gente insensata? Diz… Que Moloch sangrento adorais? Que vingativo senhor, o das chuvas candentes das proibições absurdas, dos flagelos infindáveis, que vos domina pelo terror? Criais os vossos deuses à semelhança das vossas ambições. São deuses de barro, do vosso barro de desespero, raiva, despeito, amor, suavidade e rancores. Rendeis homenagem ao Deus Universal e Único, mas dentro de cada um de vós, há um altar erguido ao Deus particular ao qual a vossa alma presta um particular culto…” (Deuses de Barro)

Rui Ramos, historiador e profundo admirador da escritora, considera que “Deuses de Barro é uma excelente leitura. Se tivesse sido publicado em 1943, teria sido o melhor romance publicado em Portugal em 1943. A Agustina aos 19 anos já estava muito acima dos seus contemporâneos. Mas este romance tem outra vertente interessante: é ainda mais ousado do que os romances que vieram imediatamente a seguir, Mundo Fechado e Super-homens, em que se nota que Agustina se contém mais dentro das convenções romanescas da época. Em Deuses de Barro, é mais claro que o aspeto superficialmente ‘realista’ destes primeiros romances de Agustina é apenas uma ilusão, e que o que lhe importava já era uma dimensão mítica, que certamente justificará interpretações muito variadas.”

Deus perante o silêncio dos homens

Agustina Bessa-Luís, aos 15 quando escreveu a primeira novela, entretanto perdida, Ídolo de Barro.

Não sabemos como é que há pessoas que nascem assim, tão conscientes do horror da vida e tão capazes de colocar isso em palavras como se eleitas testemunhas impotentes das profundezas da alma dos homens e dos deuses. Aos 19 anos, Agustina já tinha, por assim dizer, construido o seu próprio mundo, como fazem todos os artistas realmente geniais e não apenas inteligentes ou talentosos. Sousa Costa não percebeu que ela não poderia nunca ser iconoclasta porque ela era sibila, a transmissora das palavras divinas. Por isso, e apesar de estarmos no Portugal dos anos 40, na província, não há aqui nada que remeta para o Deus cristão. Este Deus está àquem e além de qualquer religião. É maior, mais profundo e mais total.

Sob o realismo da história (tão atual sob as suas vestes antigas) de Ana, a empregada miserável, quase órfã de uma casa fidalga e da sua paixão por José Maria, o fidalgo com quem brincava na infância e que um dia regressa fraco, cheio de ideais românticos e em busca de um ideal de pureza que julga ver em Ana, um pouco como os Neorealistas viam na figura do “povo”. Mas, ao contrário destes, Ana muito mais indomável pelos homens e muito mais prisioneira de si mesma, dos seus desejos egoístas das suas fantasias, das suas carências. Podia ter ficado por aqui. Mas Agustina vai mais longe e esta estória serve sobretudo para ela questionar a relação dos Homens com Deus, mostrando como nós queremos um Deus para usar egoisticamente à mercê das nossas necessidades mesquinhas, da nossa vida vã. Os deuses dos homens são por isso de barro, frágeis bonecos sem vontade própria, ao contrário do verdadeiro Deus ou verdade, ou mundo. Essa coisa que não se nomeia mas se compreende.

(…)foi boa; e irmã num ódio de proletário recalcado, no fundo contente ante um espectáculo de sofrimento que lhe doía, a espaços, como o de um igual, mas que doeria mais mais se fosse de alegria. — Coitada, coitada da Ana!– O povo, altruísta e nobre quando se compadece! Monstruoso, ignóbil, quando felicitando, inveja!”

Mundos fechados

E foi por onde também começou — pelo mundo rural que tão bem conhecia, a Casa do Paço, em Travanca, aquele mundo fechado que frequentara em criança e adolescente, onde o convívio com as tias Maria e Amélia, sobretudo Amélia (a Sibila), fora o exemplo para a sua vida, um legado de sabedoria transmitido como uma profecia. As duas últimas páginas d’’A Sibila’ testemunham, numa linguagem oracular, como num transe arrepiante e comovente, pela revelação do profundo, a transmissão de um destino, que ela, Agustina, terá de continuar a cumprir, depois da morte da Sibila. ‘Deuses de Barro’, se por um lado é um esboço para a descoberta dos mundos fechados que integram estes três romances iniciais, por outro, representa já um grito de liberdade, ousadia, revolta e desafio contra os deuses de barro que nos vigiam, nos tolhem, com quem somos obrigados a conviver e a venerar.” (Mónica Baldaque, prefácio de “Deuses de Barro”)

Não é evidente, para Mónica Baldaque, porque é que mais de dois meses passados sobre a saída deste livro exista o que chama de “silêncio total”: “Sinto que as pessoas deixaram de saber ler, que os críticos que existem não têm já capacidade para ler Agustina e sentem que não têm nada para dizer”. A filha da escritora diz ainda temer que se parta do princípio que este, por ter sido escrito na adolescência, seja um livro falhado e, por isso, não tentem sequer “ouvi-lo”.

Também Rui Ramos considera que este não é um inédito como tantos outros: “Parece-me que este é mais o caso de um inédito do tipo dos inéditos de Fernando Pessoa, que não os publicou, mas também não quis que não fossem publicados. Portanto, creio que a família tomou uma decisão correta, até porque este é um excelente romance. Não é apenas uma obra com valor arqueológico para os apreciadores de Agustina”.

Desde Agosto até agora já foram reeditados seis romances e em breve sairão mais dois. Entretanto também ficaram prontos três documentários sobre a obra da escritora com o guião de Mónica Baldaque e realização de Adriano Nazareth, que foram apresentados, no passado dia 14 de Dezembro, no palácio Galveias, em Lisboa. Na sala havia pouca gente. Estava a professora Maria Filomena Molder, alguns familiares da escritora, mas não estavam nenhum dos prefaciadores dos livros editados pela Relógio d’Água, nem mesmo as habituais presenças que se reúnem em torno de Agustina ao longo dos anos, nem mesmo jornalistas.

Estas três médias metragens — “As Sibilas do Paço”, “Fanny e a Melancolia” e “Ema e o Prato de Figos” — formam outro dos projetos de Mónica que, nos últimos anos, se têm dedicado à obra de Agustina. Contou ao Observador que, sem qualquer apoio do Ministério da Cultura e apenas com a ajuda das Câmaras Municipais de Amarante, de Baião da Régua, da Fundação Gulbenkian e “farta de realizadores e guionistas que andavam há anos a adiar o projeto”, meteu mãos à obra, coseu escritos dispersos com excertos dos livros, com memórias e escreveu o guião:

“A Agustina adorava cinema daí que eu e o meu pai quiséssemos ter estes filmes prontos para lhe oferecer na passagens dos seus 95 anos. Por outro lado, a casa do Paço, no Douro, foi vendida provavelmente será demolida ou transformada pelos novos proprietários, queria ter um registo dessa casa, dessa paisagem onde ela e Sibila se fundiram, onde está a fonte dos seus romances.”

Três documentários sobre três obras de Agustina estão a ser negociados com a RTP2

Cada um destes pequenos filmes faz-nos revisitar um romance de Agustina e, ao mesmo tempo, vários momentos da sua biografia. Em Sibilas do Paço revisita-se A Sibila, mas também este Deuses de Barro, mostra-se a casa matricial que se metamorfoseou em todas essas casas que se erguem nos romances da autora, quase sempre viradas a ocaso, testemunhas silenciosas e escuras, guardiãs de mistérios milenares. Pela casa da Vesada conhecemos um pouco da vida de Agustina, “que nasceu herdeira não de bens materiais mas do que é justo e do que é sábio”, da sua infância e adolescência. No segundo documentário evoca-se Fanny Owen mas também dois interlocutores privilegiados da escritora: o cineasta Manoel de Oliveira e Camilo Castelo Branco. No terceiro volta-se a Vale Abraão para conhecer Claudine, uma Emma Bovary da vida real, uma mulher francesa bela e culta com quem a escritora conviveu nos anos 60 em Esposende e de quem depois se perdeu, o que lhe permitiu efabular o seu destino como Emma.

Os três filmes, de cerca de trinta minutos cada, estão a ser negociados com a RTP2 e já há alguns convites de pequenas salas de cinema. A família afirma ter toda a disponibilidade para levar os documentários a mais sítios que tenham interesse em fazer a sua projeção.