Há 25 anos Portugal era um país substancialmente diferente. Cavaco Silva era primeiro-ministro, o Centro Comercial Colombo ainda não tinha passado de um buraco aberto e pejado de gaivotas na zona do Colégio Militar e o Benfica fazia alinhar muitas vezes a dupla Yuran e Kulkov. Ah, e os únicos músicos estrangeiros habitués da nossa terra eram os Gene Loves Jezebel e o Lloyd Cole. Também por essa razão a vinda ao Estádio José Alvalade de uma banda com o calibre e os pergaminhos dos Metallica tornou-se um acontecimento, ao qual eu faltei. É melhor admiti-lo desde já, nesta fase do texto, para não alimentar logros nem glórias fáceis.
Não estive lá, nessa noite de 16 de Junho, até porque para o dia seguinte estava convocado o meu exame de Geometria Descritiva do 12º ano, prova decisiva para a conclusão da minha passagem pelo ensino secundário. E teste infinitamente mais pesado-barra-metaleiro do que qualquer alinhamento de canções guedelhudas com vista para mais de 60.000 almas. Apesar de tudo, foi com sincero desgosto que percebi que teria de abandonar os planos de assistir ao vivo aos riffs de guitarra do Kirk Hammett e ao refrão de “Master of Puppets”. Aliás, essa canção, que ainda é uma das mais emblemáticas da banda, tem o tal refrão capaz de provocar um maravilhamento e uma perturbação notáveis. Se desfrutada hoje pela primeira vez, equivaleria a algo como estar a comer um gelado Nanarella enquanto assistimos à EMEL a rebocar-nos o carro.
A verdade é que à época vibrava com regularidade ao som de Kill’em All, Ride The Lightning, Master of Puppets e And Justice For All, e vivi com apreensão a impossibilidade de me confrontar com a versão de palco dos álbuns que para mim tinham os nomes de código BASF 1, BASF 2 e BASF 3 – alguma alma caridosa gravou-mos em cassetes, ainda por cima de uma forma poupadinha, e sim, o Ride The Lightning e o Master cabiam numa única BASF de 90 minutos. Um gesto de partilha banalíssimo e ao qual seria impensável associar a palavra “pirataria”, que acabou a servir de fraco consolo analógico. A minha falta de habilidade para lidar com linhas de terra, rebatimentos e projecções de sólidos acabou por impor-se, condenando-me ao referido exame e à situação insólita de ter dinheiro disponível para gastar em rock’n’roll, sem ter propriamente onde aplicá-lo.
The Thing That Shoul Not Be
O bom senso e a necessidade de um estudo que se elevasse à ordem do milagre impediam-me de desfrutar dos Metallica, ainda por cima acompanhados dos muito recomendáveis The Cult (acabaria anos mais tarde a ver o Ian Astbury a fazer de Jim Morrison mas esse pecadilho fica de fora deste artigo, até porque não há dinheiro que pague o embaraço) e dos divertidíssimos Suicidal Tendencies, combo thrash que fazia parte do meu cardápio musical desses anos.
Mas se o encontro estava destinado a não acontecer, mais desconcertante ainda se tornava o facto de eu já ter angariado há muito a verba necessária à compra do bilhete, através de vendas cirúrgicas do património familiar na Feira da Ladra. Uma prática na qual a minha entourage juvenil de bairro era useira e vezeira. O desfrute dos Metallica posto em causa – “Justice is lost, justice is raped, justice is gone” – e eu com umas notas de conto na mão. Resultado: deixa lá ver se ainda dá para ir ao concerto dos U2, que até já se encontrava esgotado (os irlandeses actuavam a 15 de Maio em Alvalade, sensivelmente um mês antes dos Metallica).
Através do passa-palavra e do bate-boca, acabei por saber da existência de uma amiga de uma amiga que queria desfazer-se do bilhete que tinha comprado atempadamente. Já eu, relapso e pouco amigo dos ademanes de Bono, passava agora pela necessidade de mendigar por uma oportunidade de pôr os pés no estádio de todos os concertos que importavam. Acabámos a trocar números de telefone e a marcar um blind date no Rossio para levar o negócio clandestino avante.
Num tempo em que o whatsapp era da ordem da ficção científica, idem para o email e para as fotos de perfil do Facebook, tratámos de descrever a roupa que levaríamos ao encontro marcado para a porta da Valentim de Carvalho. Blusão de ganga tal, óculos de aros de tartaruga assim, o rabo de cavalo assado. Transacção bem sucedida, Zoo TV à vista. Aos poucos, e em jeito de prémio de consolação, iria ver um concerto multinacional, maneira de não me tornar um “Harvester of Sorrow”.
Saturday, Bloody Saturday
Quem gosta muito dos U2 sabe que eles são feras do palco. Quem, como eu próprio, não gosta por aí além, também. Apesar de se tratar de uma segunda escolha, o espectáculo desembrulhado por Bono e companhia em Alvalade foi de estalo. Luz, cor, decibéis, uma chamada para a teletáxis que acabou mal e entre risos. Tudo isso contribuiu para uma certa sensação de encantamento que me levou a comprar o disco Achtung Baby (é mentira, pedi apenas que mo gravassem numa cassete) e a retomar in loco, ou seja, no relvado do Sporting, um namoro de adolescência que tinha sido interrompido há umas semanas.
Infelizmente, o namoro teve o mesmo destino que o meu enlevo momentâneo pelos U2 e extinguiu-se na mesma nuvem efémera que dá corpo à música pop. Seja como for, foi com deleite que assisti à prestação do quadrado Bono-Edge-Mullen-Clayton e achei durante algum tempo que ela se movia mesmo em mysterious ways. Bom, talvez se devesse apenas ao facto de ela morar em Queluz.
Digamos que a troca dos Metallica pelos U2 acabou por ser uma forma feliz de lei das compensações, um aplicar um penso rápido ao meu desgosto musical, impedindo-o de abrir em chaga e poupando-me a uma crise existencial aguda. Afinal, acabara de trocar o hedonismo, os acordes pesados e a saudável irresponsabilidade da juventude por uma atitude prudente e ponderada. Moral da história: às vezes, mas só às vezes, vale a pena trocar o gozo visceral pelas canções mansas. E quem diz canções mansas, diz treino de axonometrias ortogonais. Desculpa, James Hetfield, mas fiquei muito feliz com o meu 14.
[os Metallica actuam esta quinta feira, dia 1 de fevereiro, na Altice Arena]
Pedro Vieira é pivô de televisão e ilustrador relutante.