Foi aos escritores Javier Cercas e Daniel Alarcón que coube encerrar a oitava edição do Festival Literário da Madeira (FLM). No Teatro Municipal Baltazar Dias, os dois escritores de língua espanhola discutiram a relação entre jornalismo e literatura, partindo de uma frase do poeta e crítico literário britânico Mathew Arnold, “o jornalismo é literatura com pressa”, numa sessão descrita pelo diretor do festival, Francesco Valentini, como “extraordinária”.

O espanhol Javier Cercas — recentemente nomeado para o Man Booker Prize International, o prémio de tradução em inglês, com o romance O Impostor — disse sentir-se ele próprio “um impostor”, que estava “fora de sítio”, porque não é jornalista. “Não estudei jornalismo, nunca trabalhei numa redação. O que faço não sei se é jornalismo”, admitiu o escritor, que baseia os seus romances em factos reais.

“É verdade que quando um jornalista lê os meus livros, como o O Impostor e O Monarca das Sombras, os dois últimos, me perguntam: ‘Escreveste uma crónica?’, e eu digo ’sim’. Quando falo com um historiador, ele pergunta-me: ‘Javier, este é um livro de História?’, e eu digo ‘sim’. Quando falo com um filósofo, ele pergunta-me: ‘Isto é uma reflexão filosófica?’, e eu digo ‘sim, é’. E assim sucessivamente”, brincou Cercas, admitindo que os livros que escreve “têm fronteiras com estes géneros”. “Acho que o romance enquanto género literário tem a capacidade de assimilar e utilizar todos os géneros literários.” Foi isso que fez Cervantes, autor de Dom Quixote. “Curiosamente escrito em espanhol.”

Esta incerteza em relação ao género dos seus livros também se aplica nos artigos que escreve mensalmente para o jornal El País. “É verdade que escrevo para um jornal, mas não tenho a certeza de que aquilo que faço é jornalismo”, disse Javier Cercas. “Não sei bem o que é. Nem tudo o que se publica nos jornais é jornalismo.” Relativamente à frase de Mathew Arnold, Cercas garantiu que não está de acordo com a opinião do crítico britânico porque o que faz, não faz com pressa. “Algumas coisas que os jornalistas fazem, são feitas com pressa. Já tentei fazer isso, mas tive ataques de angústia e de pânico. Escrevo com muita lentidão.” Apesar disso, Cercas admite que começar a escrever para um jornal o ajudou a “sair da caixa”. “Antes disso, era um escritor de gabinete. Escrever para a imprensa obrigou-me a sair da caixa e a contrastar a escrita com a realidade.”

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Daniel Alarcón, vencedor do prémio PEN EUA com a obra A Rádio da Cidade Perdida, publicada em 2007, admitiu que também percorreu um “caminho estranho” em direção ao jornalismo. O peruano, que começou por ser escritor, é hoje professor de Jornalismo na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde tem trabalhado sobretudo com rádio. “É muito estranho para mim. Tive de aprender várias coisas que nunca tinha feito para poder ensinar”, afirmou, frisando que, tal como Cercas, também trata os seus textos jornalísticos da mesma forma que trata os seus textos literários.

“Não faço distinção. Para mim, estou a contar histórias. E cada género vai ensinando a melhor maneira de contar cada história.” E tal como o espanhol, também é um escritor lento: “Acabei de publicar nos Estados Unidos da América uma coleção de contos. O maior texto demorou quase uma década a escrever. Portanto, sou um escritor lento.”

Questionado sobre a necessidade de contar a verdade e de desmascarar a mentiras, numa referência a uma frase sua, Javier Cercas salientou que “a verdade do jornalismo, da História, não é a verdade da literatura”. “São verdades distintas”, afirmou o escritor espanhol. “A verdade do jornalismo é uma verdade concreta, factual, histórica. Por outro lado, a verdade da ficção, da literatura, é outra — é uma verdade moral, abstrata, universal. A literatura, a ficção, preocupa-se em geral com o que acontece a todos os homens, em qualquer circunstância, em qualquer lugar. Essa busca pela verdade faz-se na ficção através de uma espécie de mentira.”

Durante a conversa desta sábado, conduzida pela jornalista Maria João Costa, o autor espanhol fez questão de salientar que, na atualidade, o jornalismo é “mais importante do que nunca”. “Hoje, o jornalismo tem uma função fundamental. Precisamos mais dele do que nunca. Não basta contar verdades, é preciso desmascarar mentiras porque as piores mentiras não são as mentiras puras, isentas de verdade, são as que são mescladas com verdade, que têm um grão de verdade, um gosto de verdade.

Além disso, os meios de comunicação desempenham um papel importante de denúncia. Eles “não refletem apenas a realidade, criam-na. O que não aparece nos meios de comunicação, não existe”, disse Cercas, exemplificando que, “na Europa, precisámos de ver uma fotografia de um cadáver de uma criança na praia para nos apercebermos que havia milhões de pessoas a morrer”.

Cercas acredita ainda que a História tem muito importância e que “o passado” não é uma coisa que “está nos arquivos e nas bibliotecas e que só interessa aos freaks” como ele e aos historiadores. “Isto não é entender a realidade, porque o passado não passou. É uma dimensão do presente, onde o presente está mutilado. O passado é uma dimensão do presente onde o presente não se entende.” É por essa razão que não gosta quando lhe dizem que os seus romance são romances históricos. É que dentro da História também cabe o presente.

Relativamente à produção literária, tanto Cercas como Alarcón admitiram que não existe ficção sem uma obsessão. “Hemingway dizia que se deve escrever sobre o que conhecemos. Escrevo sempre sobre coisas que não entendo”, admitiu o autor espanhol. “A primeira obrigação do escritor é ser fiel às suas próprias obsessões e acho que, nesse sentido, não escolhemos os temas — são eles que nos escolhem a nós. Há coisas que não nos deixam obcecados, mas há outras que sim.” Para Daniel Alarcón, se não houver uma obsessão, nem vale a pena escrever.

“Escrevemos um romance porque temos de o escrever. Escrever é o mais difícil que existe”, afirmou o escritor peruano, admitindo que é ótimo a não escrever. “É um cliché dizer que a literatura é terapêutica, mas os clichés são clichés porque são verdade”, disse Javier Cercas. “A literatura quer transformar o particular no universal. A literatura de verdade é universal ou, pelo menos, aspira a isso.”

E para quando um novo livro? Javier Cercas admitiu que já está a trabalhar no sucessor de O Monarca das Sombras, publicado no ano passado, mas que preferia não falar sobre ele. “Nunca falo dos livros que estou a escrever, porque nunca sei quando é que os vou acabar”, afirmou. Já Daniel Alarcón decidiu fazer uma pausa na escrita para se dedicar à rádio. O seu próximo trabalho vai ser “um romance de não-ficção em áudio”, em espanhol, que será transmitido em vários episódios.