As instruções são simples: assim que começa o trilho não devemos tirar fotografias, conversar ou olhar para telemóvel. Devemos, sim, enfiar os auscultadores nos ouvidos e aproveitar os próximos quase 50 minutos de música feita de propósito para o trajecto. Funciona um pouco como um filme: a natureza é o cenário, o clima faz de director de fotografia e o caminho é o guião. A banda sonora deste ano foi feita pelos Tir na Gnod, um duo extraído dos Gnod, conjunto de psych-rock, kraut-drone, space-rock e outras hifenizações.

Não temos fotografias deste concerto/procissão e sabemos que as imagens valem mais do que mil palavras. Em termos cambiais, estamos em grande desvantagem, mas vamos ver o que conseguimos fazer com mil caracteres: o percurso segue umas condutas gigantes de metal, demasiado grandes para as podermos comparar com a canalização lá de casa, mas não o suficiente para fazer uma analogia com as tubagens do Super Mario. Durante os primeiros minutos, a música dos Tir na Gnod funde-se completamente com os sons da natureza – é difícil distinguir o que se está a passar fora da nossa cabeça do que se está a passar lá dentro. O trilho encaminha-se pelo interior de uma floresta que temos vontade de adjectivar como “virgem”, mas, para evitar exageros, vamos chamar-lhe “floresta depois da primeira noite de núpcias”.

Qualquer pessoa com uma imaginação irrequieta consegue imaginar um dinossauro a surgir entre as palmeiras. Havia palmeiras? No filme que se estava a desenrolar na nossa cabeça, havia. No trilho que vai até à Fajã do Redondo, talvez não.

Havia pontes, árvores caídas, um rio (ou são vários rios?), precipícios, vertigens, chuva miudinha e cerca de 80 pessoas com auscultadores nos ouvidos, em silêncio e em fila indiana, a caminhar como Lemmings ou membros involuntários de um culto suicida. O caminho acaba numa cascata, o Salto do Cabrito, junto a uma central hídrica que em tempos teve o poético nome de Fábrica da Luz. (contagem de caracteres: 1229)

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Os Tir na Gnod esperavam os caminhantes junto à cascata para um concerto que prolongou a experiência que até agora existia apenas dentro do crânio de 80 pessoas. Foi uma maneira delicada de nos trazer de volta para a realidade, num espectáculo teatral de – é a nossa interpretação – saudação à natureza.

A natureza é do caraças, até alguém pisar bosta de vaca. E alguém – “alguém” – deve tê-lo feito, porque na viagem de volta de autocarro a presença dos excrementos açorianos fazia sentir-se com especial intensidade. Faria parte do programa?

As pessoas moídas pela caminhada dirigiram-se mais tarde para a ponta Oeste de São Miguel.

O Tremor na Estufa, o concerto-surpresa do da tarde, foi nas Termas da Ferraria. Mais uma vez, o cenário levou-nos a cogitar sobre as propriedades de um hipotético “chá de pessoas”, dada a quantidade de humanos que se depositavam naquelas águas quentes vindas das entranhas da terra. O Gringo Sou Eu, músico brasileiro situado a meio caminho entre o hip-hop e o spoken word, dedicou-se a outro tipo de reflexões: racismo, violência policial e corrupção foram alguns dos temas das canções que contrastaram com o cenário um pouco mais burguês – o papel do termalismo na luta de classes permanece difícil de definir.

O espectáculo acabou com o hit feminista Mija Sentado –  urina e termas com água opaca são outro tema a desenvolver, talvez noutra altura. O músico dedicou a canção e o concerto inteiro à activista Marielle Franco, assassinada a semana passada.

Os Sheer Mag parecem ter pegado na deixa de O Gringo Sou Eu e subiram ao palco do Ateneu Comercial de Ponta Delgada para mostrar as suas canções sobre desigualdade, gentrificação e outras questões que os vossos amigos estão sempre a debater no Facebook. Não são canções de protesto no sentido convencional da palavra – queremos dizer: não são uma chatice – mas sim malhas rock’n’roll vindas dos anos 70 onde é enxertada uma grande dose de consciência social. Os Sheer Mag tocaram naquele que é uma dos sítios mais bonitos de Ponta Delgada: um salão de festas à antiga, com faustosos cortinados, candeeiros cheios de vidrinhos e pendurezas (candelabros?), tapetes, sofás de pano, espelhos, jarras com flores secas e muitas fotos a preto e branco dos antigos associados. A sala é um espanto, mas talvez não tenha as melhores condições para as músicas da banda americana, que suou muito mas não soou muito bem.

O serão continuou com The Mauskovic Dance Band, uma banda que mete na misturadora o afro-beat, a cumbia e o no-wave de Nova Iorque. Quem foi diz que foi “o melhor concerto do festival”. Que é exactamente o que ouvimos sempre que decidimos ir mais cedo para o hotel, descansar as pernas.

O Observador viajou a convite da Azores Airlines, da Visitazores e do Neat Hotel Avenida.