Título: “A Vítima Tem Sempre Razão?”
Autor: Francisco Bosco
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 232
Preço: 15,90€

No meio da enorme controvérsia acerca de liberdade de expressão, feminismos e lutas identitárias, a voz de Francisco Bosco destaca-se pela sensatez, inteligência e ponderação. Ao mesmo tempo que Bosco explica argutamente os motivos por detrás do progressivo entrincheiramento que se tem verificado nas redes sociais (e, por arrasto, em toda a comunicação social), o autor de A Vítima Tem Sempre Razão? procura, por bizarro que hoje possa parecer, ouvir ambos os lados da barricada e chegar a uma resposta que reconheça a legitimidade da posição contrária à sua. Nem que fosse só por isso, já teria valido a pena.

O livro discute então, a partir do estudo da realidade brasileira, a possibilidade de vítimas estruturais como as pertencentes a comunidades minoritárias e/ou a comunidades marginalizadas no espaço público (essencialmente homossexuais, negros e mulheres) não serem necessariamente vítimas em todos os casos particulares. Esta posição, do mais elementar bom senso, afasta-se, contudo, de posições mais conservadoras ao reconhecer a sociedade contemporânea como uma sociedade que privilegia homens brancos, afastando-se também de muitas versões do feminismo ao negar que alguém que seja menorizado aos olhos da lei e do Estado tenha por isso direito a inverter o ónus da prova, a contestar a presunção de inocência ou a prejudicar indivíduos concretos por pertencerem a uma classe privilegiada. Ao negar, no fundo, a destruição do estado de direito conforme o conhecemos.

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As tentativas que Bosco faz para tornar compreensível o ponto a que chegámos passam sempre por uma historização. Bosco historiza a evolução da cultura brasileira, do samba, da esquerda e do feminismo, por exemplo. Ao historizar, Bosco está a colocar em contexto e ao colocar em contexto está a tornar os conflitos compreensíveis não já como uma guerra de surdos mas como a defesa de posições legítimas em assuntos complexos. É através deste mesmo processo que o escritor irá tornar inteligível a posição das alas mais radicais do feminismo que descrevem as mulheres como estando numa posição de ausência total de soberania face aos homens, não estando dessa forma aptas a dar o seu consentimento a nada.

No entanto, Bosco desligitima essa posição radical, uma vez que, ainda que o diagnóstico pudesse, na sua origem, ter alguma coisa de acertado, aproximaria de forma abusiva violações de relações sexuais entendidas como normais, o que, mais do que problematizar as relações sexuais entendidas como normais, tenderia a desvalorizar as violações. Expandindo esta posição feminista, parece-me possível argumentar que, estando as mulheres numa posição de tão radical submissão face aos homens que não conseguem consentir o que quer que seja, a própria legitimidade da sua participação em sufrágios teria que ser amplamente discutida. A proposta do radical-feminismo colocaria, assim, as mulheres numa redoma de onde dificilmente conseguiriam sair.

Mais importante do que colocar mulheres em redomas e homens em jaulas parece ser então criar condições para que as mulheres (e por mulheres entenda-se todos os membros de comunidades tratadas de forma desigual) se libertem verdadeiramente. Bosco diagnostica isso mesmo ao afirmar que, hoje em dia, “responde-se com a fragilização dos direitos dos homens, em vez da luta pelo reforço aos direitos de todos” (p.192), propondo, em vez de ataques individuais, soluções estruturais como, por exemplo, quotas na administração pública e nos tribunais ou a vigilância atenta e imparcial por parte da comunicação social do funcionamento dos órgãos de justiça.

Ainda a este respeito, talvez o momento mais interessante do livro seja quando se dá conta de uma divisão no interior das esquerdas, entre a esquerda identitária que luta pela defesa dos direitos das mulheres, negros e LGBT e uma esquerda que lamenta o abandono da luta social e económica em detrimento dessas outras lutas. A luta parece ser entre uma esquerda que tem como rosto as lésbicas de Arroios e uma outra que tem como rosto os trabalhadores dos estaleiros de Viana. A ideia que Bosco parece ir sugerindo ao longo do livro (para além da evidente importância de não esquecer os estaleiros de Viana) é a de que a esquerda identitária teria tudo a ganhar em encarar a sua luta não como uma luta maniqueísta, marxista e monolítica do bem contra o mal, das mulheres contra os homens, mas antes como uma luta por reconhecimento e pela defesa dos interesses dos mais carenciados.

Para esta situação extremada terá contribuído, segundo Bosco, a crescente importância das redes sociais, que, de acordo com o filósofo e poeta, exponenciam o narcisismo e a crueldade ao satisfazerem a necessidade de pertença tribal, pertença essa que é ameaçada por alegados dissidentes. A esta certeira análise importa acrescentar ainda que a enorme maioria dos frequentadores das redes sociais não parece ser inteligente o suficiente para saber discernir a informação que lhe é facultada, preferindo por isso ser coerente a uma ideia vaga e redutora do mundo, passível de ser descrita em menos de 280 caracteres.

A ponderação e vontade de estabelecer diálogo com os seus oponentes não é, no entanto, universal. Na introdução que escreveu à edição portuguesa do seu livro, Bosco não esconde o incómodo por ter sido descrito por algumas alas do feminismo como conservador. Mais à frente, ao discutir a questão das marchinhas de Carnaval, irá atacar de forma cerrada toda e qualquer ideia anti-moderna ou tradicionalista. Ao fazê-lo, em nenhum momento irá procurar entender a origem ou justificação para o facto de uma considerável percentagem da população ainda aderir a essas mesmas ideias.

Bosco parece assim desejar afastar de toda e qualquer discussão a direita conservadora, considerando-a, por isso, indigna. Nesse mesmo capítulo, parece não recusar a instauração de uma censura para obras preconceituosas contemporâneas, defendendo também o boicote à Dolce & Gabbana, uma vez que os dois estilistas donos da marca (ambos homossexuais e católicos) se manifestaram contra a adopção de crianças por casais homossexuais. Ainda que se compreenda a vontade de não patrocinar discursos com que não concordemos, a proposta de punir economicamente pessoas cuja ideologia não se adequa à nossa visão do mundo é perigosa. É perigosa porque não responde a ideias com debate, como deveria acontecer em democracias adultas, mas é perigosa também porque irradiar do espaço público ideias que, sendo partilhadas por boa parte da população (em Portugal, segundo uma sondagem do Expresso de 2014, 39,1% da população votaria contra a adopção de crianças por casais homossexuais, contra 40.4% que votaria a favor), não estamos dispostos sequer a discutir leva a que essas ideias não desapareçam, vencidas por ideias mais robustas, mas sejam antes apenas varridas para debaixo do tapete. Seria aliás possível argumentar que foi precisamente o sentimento de falta de representatividade das opiniões de uma grande parte da população no espaço público dos Estados Unidos que conduziu à eleição de Trump em 2016, contrariando todas as sondagens.

Finalmente, a discussão de Bosco acerca do videoclip de Mallu Magalhães é dada a alguns exageros: Bosco sugere que os negros que contracenam com Mallu Magalhães estão cobertos em óleo numa alusão à “comercialização de escravos em praça pública, em que o óleo servia para aparentá-los ‘mais dispostos e saudáveis’” (página 165); sugere também uma associação entre o cenário “precário, incompleto, cru — e os bailarinos negros seminus; relação que reforça a associação entre negros e, digamos, inaptidão para a técnica” (página 165). Curiosamente, a Mota-Engil nunca se lembrou de contratar zombies para construir ruas amplas e bem pavimentadas, apesar de estarem inegavelmente associados no famoso videoclipe de Michael Jackson.