O que é que se faz quando se quer subverter os rankings baseados nas notas? Cria-se a Escola Amiga da Criança. O mentor da ideia é Eduardo Sá que desafiou os pais da Confap e a editora Leya a criarem este concurso. As inscrições já fecharam e há 800 escolas candidatas a serem amigas dos seus estudantes. Os resultados serão conhecidos no Dia da Criança, 1 de junho, e a escola que apresentar a ideia mais extraordinária vai ficar com a sua biblioteca recheada de novos livros.
“A escola não pode ser uma linha de montagem de tecnocratas de sucesso, tem de ser muito mais que isso”, diz o psicólogo Eduardo Sá para explicar o que despertou em si esta vontade de lutar contra os rankings instituídos.
Quando teve a ideia de criar esta espécie de bandeira azul da educação, como o próprio lhe chama, Eduardo Sá sentia que a escola estava a perder as coordenadas que pretendemos que ela tenha. “E os pais, na sua bondade de pais, acabam por dar mais importância à escola do que aquela que ela deve ter. De repente, tudo o que não seja a escola parece perder importância na vida das crianças”, ressalva.
Por isso, quis criar um selo alternativo que premiasse os estabelecimentos de ensino que têm projetos e condições realmente amigas dos estudantes. Porque para ser boa, considera o psicólogo, a escola não pode ter apenas um conjunto de alunos com bons resultados escolares, precisa também de ter bons recreios, dar-lhes uma boa alimentação, envolver os pais no projeto educativo e ouvir os estudantes.
“Chegámos a um patamar em que, em primeiro lugar, a escola serve para criar condições para se entrar no ensino superior. Isto não é razoável, a escola é muito mais do que isso. E entrámos numa atmosfera quase de angústia que faz com que se parta do pressuposto que a vida acaba aos 17 anos com a entrada no ensino superior, como se andássemos a produzir corredores de 110 metros de barreiras quando a vida é uma maratona”, diz.
Este cenário é para si muito inquietante por considerar que a escola e a sociedade estão a desprezar questões que fazem parte de uma formação de carácter de jovens que têm de ser perguntadores, curiosos, autónomos e capazes de aprender a estudar, algo que “a escola vai desprezando todos os dias”.
“São tantas as aulas, os trabalhos que, de repente, estudar, pensar, duvidar, perguntar parecem ser bens em vias de extinção. E tornou-se importante criarmos um contraponto àquilo que têm sido os rankings — podem ser importantes porque nos dão uma amostragem nacional que nos deve obrigar a retirar consequências deles”, diz Eduardo Sá.
Mas os rankings, defende, foram subvertidos para uma espécie de controlo de qualidade em que muitas escolas acabam por fazer publicidade enganosa. “E acabam por não aceitar alguns jovens como seus estudantes porque não têm à priori as notas ao nível do que deviam. A ideia era subverter isto. Se andam num furor tão desenfreado com os rankings, nós vamos criar um outro ranking e vamos olhar para um conjunto de aspectos que são absolutamente fundamentais dentro de uma escola”, explica o psicólogo.
Jorge Ascenção, presidente da Confap — Confederação Nacional das Associações de Pais concorda com este diagnóstico: “Como diz o professor Eduardo Sá, é uma revolução silenciosa em relação à forma como a educação está a ser vista e nós, pais, estamos a dar um sinal de que queremos que as coisas sejam diferentes e de que queremos participar na solução.”
A revolução silenciosa passa não só por subverter os rankings, mas também por ter uma escola menos focada na cultura da nota. “Vemos o frenesim à volta dos rankings, e sentimos que isso está a acontecer cada vez mais cedo. Logo no 1.º ciclo já há muita preocupação com as notas. E depois não estamos preocupados se as nossas crianças e os nossos jovens crescem com aquilo que é a vida à volta deles, as questões do dia a dia, os valores. Só pensamos que têm de estar muito quietinhos na sala de aula e a estudar para poder fazer um teste”, argumenta Jorge Ascenção.
Uma Escola Amiga da Criança tem bons recreios
E o que é uma escola amiga da criança para Eduardo Sá? “É uma escola que tem um rosto humano, um fator que se tem vindo a perder. Uma escola que despreza todas as características da humanidade deixou de ser uma escola. Por isso, na Escola Amiga temos de olhar para a qualidade dos recreios, a qualidade das casas de banho dos alunos, a qualidade da alimentação, a maneira como trazem os pais para a participação nos projetos das escolas… Tudo isto são aspectos que não podiam ser desprezados pelas escolas e que são colocados em segundo plano todos os dias”, defende o mentor da ideia.
Se todas estas características contam, os recreios assumem um papel especialmente importante, não só pela qualidade dos espaços onde se brinca mas também pelo tempo disponível para atividades não letivas.
“À luz do Ministério de Educação brincar é uma atividade de primavera-verão, há muitas escolas privadas e públicas que não têm um recreio coberto digno desse nome. E depois têm recreios de 5 ou de 10 minutos entre aulas de 90 minutos. As crianças não podem conviver. Pelo modo como o ministério vê o recreio, nós vemos como ele não percebe de crianças. Então que sejam os pais e os professores a dizer: acordem, aprendam”, defende Eduardo Sá.
Jorge Ascenção concorda: “Há escolas com recreios que quase não existem. E quando os programas não são cumpridos prolongam-se os tempos letivos e diminuem-se os outros. Quase não há tempo para os miúdos poderem conversar entre si, para poderem brincar. E há escolas que nem infraestruturas têm para eles poderem brincar quando chove.”
Por que é que a falta de tempo para brincar é tão preocupante? “Brincar é sobretudo aprender”, explica Eduardo Sá. “Percebo que os pais dêem à escola a importância que ela tem de ter, mas brincar é mais importante do que aprender. Porque brincar implica resolver problemas, fazer perguntas, conviver, aprender a ser agressivo com lealdade e com maneiras, fazer pela vida, é uma espécie de aparelho digestivo do pensamento. E nós andamos a empanturrar as crianças de informação e quando é preciso pôr o aparelho digestivo a funcionar nós não o permitimos”, conclui o psicólogo.
E lembra que o cenário em muitas escolas é preocupante, principalmente na época da chuva: “Conheço jardins de infância que não têm nem um bocadinho de recreio coberto. Em muitas escolas públicas, quando chove, ou as crianças brincam à chuva e são castigadas, ou brincam debaixo dos beirais. E noutras quando chove vão para o ginásio como se o ar livre — poderem conviver com ele e tratá-lo por tu — fosse um bem de segunda necessidade.”
Ao selo Escola Amiga da Criança puderam candidatar-se escolas públicas e privadas, do pré-escolar ao 3.º ciclo. E em cada nível de ensino, ser amiga do estudante poderá ser ligeiramente diferente. Fundamental é que tudo gire em torno das necessidades do aluno.
“Um pré-escolar amigo da criança é aquele que incentiva a criança a perguntar porquê, em que ela está livre no seu espaço, a fazer o que mais gosta. Brinca se lhe apetecer, dorme se lhe apetecer, e tem sempre alguém com uma mão estendida pronta para a apoiar. Dá-lhe segurança, ajuda-a a confiar nos adultos nesta vida que está a começar longe da família. Há regras, mas não de mais. Deixa-as viver e crescer cada uma ao seu ritmo. O pré-escolar influencia as crianças a brincar, incute-lhes alegria de aprender brincando. Não tem de ensinar a letra A nem a B. E no pré-escolar não pode haver a ideia de que as crianças fizeram mal, se pintam o telhado de amarelo não está mal, terão a sua lógica. A nossa tendência é de pensar que estamos cá para os formatar, de condicionar o pensamento deles, a criatividade, e a escola não pode ser isso”, sublinha Jorge Ascenção.
800 candidaturas mostram que as escolas querem mudar
“Se a escola não é como devia ser a responsabilidade não é, com certeza absoluta, dos professores. Há esta ideia de que eles têm um programa para cumprir — que é importante, claro —, mas são tratados como se fossem burocratas da educação e não professores. Um professor ensina pela alma com que transmite aquilo que sabe, não pela forma como faz que um programa se cumpra. Nós só queremos devolver a alma aos professores, a partir do momento em que eles tenham alma, a escola fica um lugar muito melhor”, sublinha Eduardo Sá que se diz muito surpreendido com as 800 candidaturas que receberam.
Nem o mentor da Escola Amiga nem o presidente da Confap esperavam uma adesão tão grande no primeiro ano da iniciativa, mas veem nesses números uma vontade das escolas de mudar.
Temos cerca de 800 candidaturas, o que é muito bom. A flexibilização curricular do Ministério de Educação só teve 230 escolas no projeto-piloto”, congratula-se Jorge Ascenção.
“Nós temos muito boas práticas nas nossas escolas, mas que não são conhecidas. Este projecto Escola Amiga da Criança vai-nos ajudar a conhecer esses excelentes projetos que já existem, mas também vai ajudar a que outros acreditem que é possível fazer diferente e combater a cultura da notacracia, da escravatura da nota, e humanizar a escola em função da criança”, continua o presidente da Confap.
Um dos exemplos de que fala o presidente da Confap é o de uma professora que fundou a associação de estudantes do 1.º ano do 1.º ciclo. “Aqueles meninos eram tão pequeninos e foram eles que numa assembleia de estudantes se lembraram que na casa de banho das meninas não havia espelho. Estas coisas são tão simples, existem nas nossas escolas, e ensinam as nossas crianças a ser cidadãs desde pequenas”, argumenta Jorge Ascenção.
O papel dos professores para a mudança será também fundamental, mas para isso, como diz Eduardo Sá, é preciso que a classe volte a recuperar a alma. Os bons exemplos serão determinantes para a mudança: “Acho que os professores são desconsiderados todos os dias. Adoram ser professores e trabalham às vezes em condições de uma indignidade que não acho compreensível. Mas quando lhes apresentamos uma ideia como esta, mais ou menos maluca — com as devidas aspas — e pedimos que mostrem aos outros resignados, deprimidos que é possível mudar o mundo com pequenos nadas, a primeira coisa que os professores fizeram foi dizer vamos lá.”
Bandeira da Escola Amiga é para durar
Por esta altura, o presidente da Confap ainda não sabe bem comos será o galardão entregue às escolas. As hipóteses são várias: um selo, uma placa, um emblema e, a sua preferida, uma bandeira que os estabelecimentos de ensino possam hastear no portão de entrada.
A certeza que tem é que seja bandeira ou selo esta iniciativa é para ficar e durar, ideia com que Eduardo Sá concorda lembrando uma outra que pareceu começar como uma brincadeira de ambientalistas e que está enraizada em Portugal: a bandeira azul das praias.
“Tenho a certeza que vai ser uma ferramenta para os pais escolherem a escola dos seus filhos. Os pais começam a perceber que os filhos não têm de fazer tanto por uma nota”, esclarece Jorge Ascenção.
“Gostaríamos que as 800 candidaturas pudessem ter um selo de Escola Amiga da Criança porque ter uma larga centena de escolas que se preocupa para além da nota é muito bom. Não estamos a desvalorizar o conhecimento, o saber é importante e faz parte do processo educativo, mas é preciso ter outras componentes, como os valores, o rigor, o companheirismo, a solidariedade, o saber rir, o sentir-se bem, o gostar da escola. Ter jovens que dizem ‘eu gosto da escola’ é excelente porque é a única forma de aprenderem bem. Se conseguirmos que os miúdos gostem do espaço escolar, provavelmente terão melhores resultados com menor esforço”, defende o presidente da Confap.
E quem vai mudar tudo isto serão as mães. É essa a convicção de Eduardo Sá: “Continuo a acreditar que são as mães que transformam o mundo. Há-de chegar uma altura, quando as mães estiverem a olhar para os projetos educativos que vão dizer assim: ‘E esta escola? Tem a bandeira azul da educação? Se não tem, o meu filho não vai para aqui.’ É magnífico pôr os pais a transformar a escola. É assumirmos que são ideias simples que se transformam em ideias extraordinárias.”
O psicólogo acredita que os pais estão a ter cada vez mais a noção de que os bons alunos não são aqueles que imperativamente tiram boas notas, defendendo que os próprios governos deviam olhar para alguns dados e repensar o caminho a seguir.
“A taxa de abandono do secundário é escandalosamente alta; a taxa de reprovação do primeiro ano da faculdade devia dar que pensar; a taxa de mudança de curso no 1.º e 2.º ano de faculdade devia dar que pensar; o abandono do ensino universitário tem taxas muito inquietantes”, sublinha Eduardo Sá.
E acrescenta: “Se juntarmos estes dados todos, explique-me qual é a ideia de estarmos a criar esta noção de que o mundo acaba aos 17 anos. Não acaba. É que depois estes miúdos fazem tudo menos ter experiência de vida e saem com a designação de mestre — e isso é publicidade enganosa — mas não têm os argumentos da autonomia, da acutilância, de desembaraço, de malandrice que também é necessário, para enfrentarem os problemas com que têm de lidar para crescer em termos profissionais. Às vezes andámos a educar como se eles fossem aristocratas e eles são operários. E é bom sermos operários em relação ao mundo com toda a humildade que isso pode representar. São tão protegidos que parece que estamos a criar uma geração imunodeprimida.”
Por tudo isto, Eduardo Sá diz que é preciso parar para pensar e para ver onde o caminho que a sociedade tem trilhado nos últimos anos nos está a levar. E se não gostamos do que vemos, acredita que está na altura de mudar o mundo com ideias tão simples como a da Escola Amiga da Criança.
“Temos de parar e perceber que os rankings são só só uma amostragem para dar coordenadas a quem pensa a educação. Temos de assumir uma coisa tão simples como esta: se olharmos para o mundo, para Oriente e Ocidente, temos os jovens mais informados que alguma vez a humanidade teve, mais escolarizados, e com mais fontes de informação livres ao seu dispor que alguma vez existiram. E são estes jovens que estão a eleger os líderes mais populistas do mundo. É preciso refletirmos sobre isto”, conclui.