Título: Una piccola storia d’amore. Rafael Bordalo Pinheiro e Maria Visconti
Autora: Isabel Castanheira
Editora: Arranha-Céus
Páginas: 96 (ilustradas)
Preço: 20 €

Una piccola storia d’amore, de Isabel Castanheira, conta a história do romance de Rafael Bordalo Pinheiro com a atriz italiana Maria Visconti. A edição é da Arranha-Céus

Podemos estar convencidos de que já sabemos tudo acerca de Rafael Bordalo Pinheiro, a sua vida e obra, depois de lidos os trabalhos de José-Augusto França (1981), João Medina (1986, 2007, 2008), Irisalva Moita (1987), João Paulo Cotrim (2005), Maria Cambraia Lopes (2003, 2009), Rafael Calado (2005), Cristina Ramos e Horta (2006), Luzia Sousa Rocha (2010), Isabel Castanheira (2015) ou Pedro Bebiano Braga (2016) — e depois, de repente, aparecem umas cartas que trazem a lume uma faceta que não imaginaríamos em alguém que supostamente passou todas as horas a riscar ou a modelar. O caráter fascinantemente fortuito de descobertas deste tipo é um elogio do trabalho daqueles que acreditam — é também o meu caso — que arquivos esquecidos e jornais muito velhos escondem e ao mesmo tempo revelam documentos e factos pertinentes, e por isso apostam as suas boas energias ou horas extraordinárias na busca do que ainda não foi devidamente conhecido. O que finalmente se encontra — quantas vezes sem verdadeiramente procurar — é um prémio idêntico ao do garimpeiro de ouro ou diamantes ou ao do arqueólogo de antiguidades imersas em pó. Mas ao contrário destes, tem um valor partilhável e por isso maior.

Isabel Castanheira é autora dum inesquecível álbum sobre Rafael Bordalo Pinheiro e as Caldas da Rainha, que aqui mesmo tivemos ocasião de comentar em novembro de 2015, num texto intitulado “Gato assanhado e macaco sem galho”. Trata-se de mais de 300 páginas ilustradas em que a autora, aproveitando crónicas de jornal que publicara durante alguns anos, faz um roteiro da presença do artista nas Caldas da Rainha, servindo-nos de cicerone. Agora, por motivos óbvios, faz as vezes do compère que na boca de cena dum teatro conta a história do amor proibido (chamemos-lhe assim, por facilidade) entre Rafael Bordalo Pinheiro e a actriz teatral italiana Maria Visconti, numa narrativa hábil, empática e bem-humorada que gere na perfeição a sequência dos documentos publicados. A peça central de Una piccola storia d’amore. Rafael Bordalo Pinheiro e Maria Visconti, editado pela Arranha-Céus, é a carta que a amante do génio português escreveu de Paris a Justino Guedes e nos revela, ou confirma, que viveram juntos durante a longa e exigentíssima montagem do pavilhão português à exposição universal de que o diretor de O António Maria foi encarregado em 1889.

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A peça de cerâmica Romeu e Julieta, uma representação de Rafael Bordalo Pinheiro e da sua amante, Maria Visconti, outrora atriz na comédia Gata Branca

Uma outra carta, ao próprio Rafael, merece que os leitores a conheçam diretamente e dela não falarei aqui. Mas se essas cartas representam a prova definitiva acerca dessa relação amorosa, o pleno domínio da biografia e obra de Rafael Bordalo Pinheiro, certamente construído por muitos anos de devoção, leitura e pesquisa (até de colecionismo: v. p. 58), deixam Isabel Castanheira completamente à vontade para rastrear e comentar todos os sinais desta “pequena história de amor” deixados na obra do artista. É bem conhecido o interesse profundo (“o fascínio”, p. 22) que ele tinha por teatro, não apenas como espectador, mas também como aderecista, crítico de imprensa e até ator, e que a arte do palco — com todas as referências literárias envolvidas — lhe serviu, como o folclore, tantas vezes de metáfora ou cenário para o comentário político nas centenas de desenhos que nos deixou.

Maria Visconti chegou a Lisboa em outubro de 1881 literalmente pela mão do empresário do Teatro da Trindade, e Rafael desenha-a n’O António Maria como “bonito presente que Francisco Palha recebeu da Itália assim como da Espanha recebeu também ultimamente uma comenda. (…) A Visconti vale bem trezentas comendas de São Maurício e de São Lázaro!” (p. 14). Não duvidamos olhando o seu belíssimo retrato fotográfico (p. 38, aqui muito habilidosamente publicado no reverso do quadro columbiano de Elvira Ferreira de Almeida, esposa de Rafael desde 1866, em flagrante contraponto… — como de resto já fizera José-Augusto França na sua monografia de 1981, pp. 566-67), pois até Sousa Bastos a refere como “muito vistosa em cena”. O autor de Carteira do Artista (1898) informa que ela ficou naquele teatro do Chiado como protagonista de seis peças, após o que “deixou o teatro” em 1884.

Retrato da atriz italiana Maria Visconti. A tinta, Rafael Bordalo Pinheiro escreveu: “Maria!!!”

Este ano é também o da instalação de Rafael Bordalo Pinheiro nas Caldas da Rainha, “vila pacata, de gente simpática e vida simples” (p. 27), e a autora questiona — talvez com excessiva prudência — como “plausível” que Maria Visconti “alguma vez” o tivesse visitado ali, pois o artista quase passava mais tempo nas Caldas do que em Lisboa. O desenvolvimento da sua fábrica cerâmica assim o exigia, de facto; mas também é verdade que a distância de Lisboa lhe terá permitido ou facilitado uma vida paralela, certamente conhecida por muitos poucos. (Aliás, a atriz serviu-se de modelo para dois pratos, e primeiras experiências fabris, logo em abril e Maio de 1884, reproduzidos a pp. 83, 84-85, o primeiro dos quais conhecido precisamente como “Prato Visconti”).

O tom da carta parisiense da ex-atriz ao empresário de litografia e grande amigo de Rafael — e essa correspondência por si mesma — levam a concluir que a relação extraconjugal do artista se prolongou ao longo dos anos e teve em Paris — na temporada em que o artista ali se encarregou da montagem do pavilhão português à exposição universal — a variante cosmopolita das provincianas Caldas da Rainha e Lisboa. Isabel Castanheira também diz que os biógrafos de Bordalo Pinheiro foram sempre “muitíssimo discretos” (v. antologia, pp. 76-79) quanto a tudo isto, o que não admira, sobretudo atendendo à grandeza e complexidade do seu legado artístico, que dava muito pano para mangas… Todavia, não há dúvida de que esta história privada merece ser conhecida, sobretudo porque Maria Visconti foi por diversas vezes retratada por Rafael, quer em cerâmicas, quer em desenhos, os mais difíceis dos quais — e talvez os mais belos — em dezembro de 1899, no leito da sua morte, muito precoce e dolorosa. Alguns notarão que no cartão-fotográfico dela, que faz parte da capa deste livro, o artista escreveu a tinta “Maria!!!”. Rafael também morreu cedo (aos 59), mesmo para os padrões da época, sobrevivendo-lhe portanto seis anos apenas, que não terão sido fáceis também por isso…

Maria Visconti no seu leito de morte, num desenho da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro. A atriz morreu em dezembro de 1899, seis anos antes do artista

José-Augusto França considerou que 1899 foi, para Bordalo, “o fim de tudo, que foi também, sem dúvida, para ele, o fim de muita coisa de si próprio” (1981, p. 568). Embora Ramalho Ortigão tivesse dito que o volume de encomendas das cerâmicas bordalianas em Paris podia enriquecer o artista “se ele o quisesse”, a sua fábrica nas Caldas da Rainha colapsara precisamente quando esse êxito internacional podia ser alcançado. Castanheira não refere — por exemplo à luz dos trabalhos de Maria Helena Souto sobre a Exposição de Paris (1997, 2001) — todo o trabalho de crítica e polémica que Rafael protagonizou na ressaca dessa magna prestação da indústria e da arte portuguesa que foi, sem dúvida, também uma das demonstrações mais relevantes do nosso artista e da sua versatilidade criativa, que lhe exigiram um pesadíssimo esforço da instalação, montagem e gestão do pavilhão nacional. Nesse momento-chave, Bordalo Pinheiro contou com a presença seguramente a todos os títulos “balsâmica” de Maria Visconti, uma personagem discreta quanto possível, e desejável, dadas as circunstâncias, e que este livro — fazendo-lhe justiça — vem recolocar na biografia do artista. Ainda que poucos elementos mais se saibam, ou já se possam saber, a verdade é que a italiana voltou para Lisboa, vivendo em casa própria, sofreu um cancro e foi sepultada no cemitério dos Prazeres, numa campa que já não existe.

Os momentos felizes entre ambos ficariam representados num par de gatos branco e preto abraçados na graciosa peça cerâmica, Romeo e Julieta, sem data estabelecida. O artista que tantas vezes se representou como um gato — lembre-se o extraordinário “Por favor, empresta-me o seu lume?” (1903), em que artista jovem e artista velho se enfrentam, com gato arisco e gato gordo aos pés —, representou-se aí ao lado da sua amante, outrora atriz na comédia Gata Branca E escreveu-lhe, quem sabe se na mesma ocasião, duas quadras, dignas de nota:

“Ele — Vem cá não sejas criança,
Vem cá, não sejas tirana,
Faze-me linda bichana
Coceguinhas na pança.

Ela — Perca a esp’rança que o oiça,
Com tantas súplicas baldas;
Volte pr’as gatas das Caldas
Que isto é cá outra louça.” (p. 51)

E foi, certamente…

Não posso fechar este livro-caderno sem elogiar efusivamente o magnífico trabalho do designer Miguel Macedo, demonstrando — pelo seu lado — que no nosso país há hoje, inclusive em projetos editoriais de baixo orçamento e tiragem pequena (500 exemplares), uma criatividade gráfica de espantar, cuja excelência merece ser reconhecida, até internacionalmente, o que faz de Una Piccola Storia d’Amore. Rafael Bordalo Pinheiro e Maria Visconti um daqueles livros especiais que se guardam com muito zelo e, sobretudo, não se emprestam a ninguém.